31/03/2016

31 de Março

Hoje quis vê-la, procurá-la vestida de branco, como nem no dia em que se foram e se souberam um do outro, encontrar-lhe um sinal de não ter desaprendido de cor a cor, de olhos lindos, do mar da Figueira — nem verde, nem azul. 
Talvez me aninhasse nela e lhe perguntasse que dia é hoje. 
Depois fecharia os olhos e sonharia com a resposta, clara e cantada, 31 de Março, o dia em que o teu pai e eu casámos, na Figueira da Foz. 
Não fui, hoje. Atrasando-me, desisto de me antecipar: daqui a quarenta anos, serei eu, ali. Falta muito pouco.
E o mar da Figueira estará lá sempre.

~

E também chega o dia em que

transformas uma avaria do teu carro num reflexo condicionado teu.
Pavlov, onde é que estás?
Cachorrinho...
Como nunca pode estar tudo bem com a saudinha do meu boi, agora é o motor de arranque que está a falhar, digamos. (Ainda eu não paguei a conta do arranjo anterior — mas não por falta de vontade ou outra falta qualquer, e sim porque o mecânico se retraiu, ou se condoeu, ou se absteve.) O que é certo, é que, agora, tenho que dar à chave duas vezes, caso contrário o bicho não liga nem mexe. Só à segunda bombada na chave é que mostra ao mundo que, afinal, sempre quer viver. 
Mas hoje, sei lá por que santinho que caiu do altar, dei à chave, ele ligou o motor à primeira, esperei três segundos, desliguei-o e voltei a ligá-lo. 
É que eu também levo tempo a desabituar-me do que me faz sofrer.

Tonifika-te




É mais na Segunda Circular que me acontece: vou ali a passar e aquilo está tão bem colocado que nem à visão periférica escapa. Refiro-me aos outdoors do Tonik, aquele ginásio que diz que já tem 13 anos, mas do qual eu só comecei a ouvir falar anteontem, e vocês hoje e agora. 
Daqui fala-vos uma pessoa que, conforme sabeis — e, se não, ficais a saber agora (isto hoje é só surpresas, pareço um ovo Kinder*) — pratica exercício físico, e não só o mental, ao qual assistis diariamente, com uma profusão que até a mim assusta.

Não sei porquê. Ainda hoje, não sei por que é que ando no ginásio. Aquilo cansa-me dos músculos e da mente; obriga-me a uma organização psíquica, física e estratégica que não foi feita para mim. Eu sou do sofá, e o sofá tem-me. Eu sou da pipoca, do hambúrguer e do Ginger ale, e eles são meus; gasto lá dinheiro; comprometo o meu descanso dos sábados e dos domingos; fico toda suada e a sentir-me um sebo; aturo o cheiro a suor e a chulé de uma série de desconhecidos (não perdendo a oportunidade para orar no sentido de que não passem a conhecidos — aquilo a que a linguagem facebookiana chama "amigos", hahahahehehehihihihohohohuhuhu —, e de oferecer em sacrifício pela saúde dos meus); partilho o balneário com uma data de mulheres e miúdas, algumas tontas como baratas; topo e interpreto, com o semblante mais inexpressivo que consigo forjar, mas com a tensão arterial a níveis exponenciais e a têmpora prestes a rebentar, os olhares mais diversificados que me são dirigidos, entre sou-muita-bom-não-sou-?, tásmaquerer, deves-ter-a-mania, fraquinha, ó-minha-senhora-já-deslagava-essa-máquina-que-é-para-jovens, que-gorda, que-magra. Devia odiar lá ir. E odeio, mas vou, porque adoro sofrer e posso ter reencarnado no Marquis (allo, ça va?).

Ao contrário do que pensa a maioria das pessoas (eu hoje estou este poço e vou continuar no registo via de ensino), não existem corpos perfeitos. E isto também é válido para os ginásios. Ninguém que frequente um ginásio (e faça exercício, que isso de lá ir ver as vistas e conversar com os PTs também não tonifica, a não ser os globos oculares e a língua), passa de gorducho ou gordinho a Iron Man, e, em princípio, a inversa também é verdadeira. Mas não é isso que diz a campanha do Tonik. Diz que sim. Mais: promove a ideia de que magreza é beleza, e que os gordos têm que ser todos infelizes ou carrancudos, já para não dizer mal sucedidos. E que só depende deles (ATÉ QUANDO?) mudarem essa imagem e essa forma de estar, para a de magros e fixes.

Por acaso, a mim, que tenho a PDM, instilam-me, devagarinho, a ideia inversa.




* também não me importava de ser patrocinada pelos ovos Kinder, vejam lá isso. 

30/03/2016

Voltou, a minha amiga pária

Fotografias de Steve McCurry

Avistei-a ao longe e, se não a reconhecesse imediatamente, diria que se tratava da rapariga afegã, por duas vezes capa da  National Geographic Magazine. Lá estava ela, saias várias até aos pés, lenço pela cabeça, atravessando a testa, aquela mesma tez do leite quando o café lá se mistura, aquele mesmo semblante autêntico e aflito — só não trágico como o de Sharbat, porque não foi da guerra que veio fugida, tão- da penúria e da fome, conluiadas com o clima, poderoso cúmplice de toda a miséria.
Lembro-me que Sharbat foi, também ela, mãe de quatro filhos — no caso, filhas — e sinto uma coerência e uma afinidade nessa memória.
Acena-me, subitamente alegre, desmanchado o quadro afegão, indica-me o lugar onde estacionar e encontramo-nos, frente a frente, genuinamente contentes por nos revermos. 
- Então, voltou para cá?
- Ai, senhora, voltei, lá muito mau.
- Fez bem em ter voltado. Então e os seus filhos?
- Trouxe o mais piquinino. 
Que estranha forma de vida, cantaria Amália, se estivesse dentro da minha cabeça. Foi daqui para a Roménia, por as saudades falarem mais alto — sabe quem sente, que gritam que não se calam, ao ponto de terem que ser silenciadas, mortas impiedosamente. Até aí, compreendo. Chega a casa, onde ficaram os quatro filhos, escolhe um — ainda por cima, de forma nada aleatória, o piquinino, e trá-lo com ela, deixando os outros três — que são, forçosamente, apenas menos piquininos do que aquele —, para trás. Esta parte, não compreendo. Não quero entender o que leva alguém a optar por um de quatro filhos, seja por que motivo for. E não quero, porque não posso. Devolvo-lhe um olhar autêntico e aflito, a que ela responde:
- Lá, muito mau...
, muito pior para mim — apesar da penúria e da fome, conluiadas com o clima, poderoso cúmplice de toda a miséria —, se tivesse agarrado num só, tão-, e deixado os outros três para trás. 

mom jeans look

- Vou comprar umas mom jeans look.
- Eu não posso fazer isso.
- Pois não.

E não posso, por duas razões: primeira, porque as mom jeans look que se vendem agora são as que eu usei quando ainda não era mom; segunda, porque, se quisesse levar a expressão mom jeans look ao pé da letra, usando as "do tempo" da minha mãe, teria que ir a outros primórdios que nada têm a ver com este "novo" estilo.
Soubesse eu o que sei hoje, e teria guardado as minhas Levi's*, que tinham os bolsos de trás inclinados para fora, no sentido da ponta da anca, e as minhas Spencer & Jones*, que até uns suspensórios traziam, para ficarem ainda mais subidas na cintura. Aquilo era tão desconfortável. O elastano ainda estava numa fase primitiva, as calças elásticas eram caríssimas e, em idades em que a quantidade vence em números a qualidade em géneros, a opção ia sempre para a ganga rija, e uma pessoa aguentava forte e feio a ganga deslavada, forte e feia — que, na altura, era linda!, (assim, com exclamação e tudo), e até se trocavam receitas de como desgastar a cor ao azul da ganga (que heresia...), sem que o padrão passasse de azul liso a azul às malhas brancas, qual azul-bovino. 
Ou melhor, se calhar, nem teria guardado nenhumas delas, que aquilo era coisa para fazer garrote nos dois joelhos cada vez que uma pessoa se sentava (e eram muitas vezes, aos cinquenta minutos de cada vez, que era o que os psicólogos da época tinham determinado como a capacidade máxima de atenção a um assunto, embora depois tenham vindo outros psicólogos que disseram que na-não, afinal são quarenta e cinco, ou então noventa, à vontade do freguês, e então chamaram-lhes "blocos de tempo", ou "componentes da carga horária"), e também fazia mais garrotes ao longo de toda a calça, nomeadamente na cintura, e também aí onde estão a pensar, coitadinhas de nós, que não sei como aguentámos (estóicas!) tanto torno sem rebentarmos a bolha, ou lá como é que se diz agora. A ver se os rapazes se metiam nessas andanças, literalmente falando. Deve ser por isso que não existe o dad jeans look — eles andam sempre à vontade, e isso nunca mudou nem mudará.
Em suma, espero mesmo que estas mom jeans look que hoje se vendem sejam, se não mais bonitas, pelo menos mais confortáveis, e que não comprometam outra geração inteira, tanto ao nível vascular como coiso.



* estou aberta a negociações

29/03/2016

Eu sou também aquela pessoa que, sistematicamente, ao tentar ligar o portátil,

carrega na tecla esc. Na escapatória. No sair daqui.
Isto diz o quê de mim? 
Freud, onde andas?


Quando um simples vestido encarnado te encarna no Diabo a quatro

Se não queres ser lobo, não lhe vistas a pele.
O Diabo veste várias formas (uma delas é Prada — quem me dera, mas teria que vender a alma ao Diabo).

E eis que foi chegado o dia em que um mero vestido me classificou como ímpia aos olhos de duas velhinhas, Testemunhas de Jeová, apenas e tão-só pelas aparências, as tais que iludem. Passaram por mim as duas, muito siamesas, ombro-a-ombro, folhetos bíblicos nas engelhadas mãos grossas e pequeninas, cabelos curtos, óculos de massa, vestes castas, sapatos só não de freira porque Jeová não tem noivas (sendo que os sapatos de freira só não são de homem porque não há freiros) —, portanto, sapatos de homem que nem o Papa atura —, pé grosso e pequenino ante pé. Mal fiz tenção de desviar caminho, desnecessários intentos, pois que o encontro, frente-a-frente, deu-se, fatal e fatalmente. Não nos trespassámos por seguirmos linhas paralelas e contrárias; próximas que estivemos por segundos, cruzámo-nos sem cruz nem sinal de cruz, invisível uma para as outras. Não fora tê-las visto dirigirem-se imediatamente a outra senhora, que vinha imediatamente atrás de mim, e teria imediatamente pensado que não estavam em horário de peregrinação e de difusão da palavra. Na dúvida se me teriam visto — quão transparente consegue uma pessoa ser, se vestida de encarnado? Quão opaco consegue ser o olhar de uma pessoa, ao vislumbrar outra, se vestida de encarnado? —, arrepiei caminho, sem um arrepio, alcancei-as novamente, contornei-as, voltei a cruzá-las, agora em modo espada-de-Afonso-Henriques — chata e comprida —, e ambas me olharam, começando pelos pés e só terminando no céu, muito acima das nossas cabeças, confirmando que me reconheciam e identificavam, confirmando-me que não me aceitavam. 


28/03/2016

Chico-smart não me tem em grande conta # 17


Cansada do Candy Crush, ou ele de mim, farta de ter estacionado há cerca de três meses no nível 125 e não sair de lá (tipo para o 126), exausta de me sentir frustrada e insegura (já por duas vezes que estive a uma gelatina de acabar com tudo), mudei-me para o Logo Quiz, que é a maior batota da internet (perdi a conta ao número de sites que têm as respostas todas do jogo), mas entretém uma pessoa quando não lhe apetece ser esta intelectual de altíssimo calibre, e resolve pousar o cachimbo e fazer uma pausa na meditação e nos catrapázios.
Ia eu muito bem no nível 6, a marca era Camper*, aquele sapato ortopédico-medonho, que custa quase um salário mínimo nacional e está no jogo como "fashion" (so-cor-ro), quando me deparo com uma ofensa. E então ocorreu-me que o pobre podia estar só a chamar pela própria mãe, o que me aplacou a raiva crescente e a vontade de acabar com tudo, com aquele também. 

* marcas, pagai-me para me calar, que isto é sempre a piorar

Sou só eu que...?

1. Cada vez que tenho que acertar a boa hora nova, no relógio de pulso, escavaco o verniz da unha do polegarzinho na piriqueta?
2. Cada vez que calço collants sentada, eles ficam todos torcidos? E não adianta despir a perna que parece mais torta, porque isso vai entortar ainda mais as duas pernas? (Da vestimenta, entenda-se)
3. Cada vez que bebo um chá de saquetas, em público, não sei o que raios fazer à saqueta, deixo-a ficar mergulhada no chá, e ela vem, invariavelmente, espetar-se no meu nariz?
4. Cada vez que tento a abertura de uma embalagem de abertura fácil, fico com o canto de plástico/fita cortante/arame de abertura nas mãos e a embalagem permanece fechada, deixando-me com a sensação que talvez uma moto-serra...?
5. Cada vez que como sushi, fico com sono, e a leve suspeita de que os nossos chineses (chineses portugueses, portanto), estão a injectar endorfinas na comida japonesa que elaboram?
6. Cada vez que evito o choque, por electricidade estática, na porta do carro, empurrando-a pelo vidro, ou com o pé, vou apanhá-lo no botão do elevador, porque o que tem que ser, tem muita força, e nunca fujas ao teu destino, Murphy é um big brother, always watching you, e a Karmen é uma bitch?
7. Cada vez que escrevo a palavra apoio, no teclado, baralho-me toda, troco a ordem das letras, escrevo apio, apoo, apooi, apoioi, e só depois de receber apoio psiquiátrico, é que consigo, finalmente, escrever apioioo?
8. Cada vez que escrevo a palavra desde, no teclado, fico feliz e vitoriosa, porque me sai à primeira?
9. Cada vez que dou com o dedo mindinho do pé numa esquina desta vida, levo alguns segundos até que qualquer outra mensagem que não seja ai, fornique-se, genitais! me chegue, literalmente, dos pés à cabeça?
10. Cada vez que alguém diz uma maldita frase, mal dita, como há pouco tive que ouvir, Há não sei quantos mês atrases, o meu cérebro bloqueia e fico ali, LSD puro, Lucy in the sky with diamonds, incapaz de processar tudo o que vem a seguir, what goes around comes around, and around, and around, numa girândola, numa espiral, num caleidoscópio?

Obrigada.

Feliz Pascoela, já que falhei a Páscoa

Olhem, desculpem. Andei atarefada. Não comi amêndoas, fora as estragadas, nem comi cabrito, que eu não sou nenhuma puma. Passei estes últimos três dias a trabalhar desalmadamente — quem vive com a espada dos prazos em cima da cabeça, sabe que ou se baixa, ou se espeta, mas saltar é que nunca (acabei de inventar, mas acho que até saiu bem) —, nos intervalos daquilo que poderia ser descanso e não foi.
Posso afirmar, com alguma segurança, que a minha Páscoa, este ano, foi muito semelhante à medida punitiva aplicada àquele senhor com nome de filósofo, só que sem a pulseira. E a piscina.

Assim, como não desejei boa Páscoa a ninguém, surge e urge agora a oportunidade para almejar-vos boa Pascoela, que é esta semana toda, que entrou ontem, até ao domingo que vem.
(Lá n'Avis é feriado e tudo. Bêjinhos, Avis, cumékiéi?)





Portanto, preparai esta semana as vestes brancas para o próximo domingo, baptizai-vos durante um dos sete dias, ou em todos, nem que seja com flores, alegria e boas vibrações. Mas tomai esse banho, rogo-vos.
E daqui vão votos de uma semana cheia das melhores amêndoas, em sentido muito lato (sobretudo, para aqueles que, como eu, não as comeram. Já disse?).

27/03/2016

Fiz um quiz. Sou o Animal

Gostos não se discutem. E o gosto musical é um deles. A mim, deu-me isto. 



Sabonete Lux* florzinhas + Super Pop* limão num só chá? A Lipton* dá

+
=
Desta vez, gamei a foto
Aliás, as fotos todas
(Os sites onde as fui buscar, excepção feita à Lipton*, também as gamaram algures)
(Ladrão que rouba a ladrão...)

Provei o chá de limão e gengibre, e vi a luz. É tão bom. É tão fresco. É tão adstringente (prontos, pá, já cá faltava a maluca a exibir as palavrórias que compra por um euro) — é mesmo aquela bebida que limpa o interior (cabeça e seu lixo incluídos), que lava a tripa e a alma. Escutai o que vos digo: o verdadeiro detox é isto, pois se isto é extraído directamente, através de processos caseiros, da raiz do sabonete Lux e do detergente Super Pop limão, que, por sua vez, e conforme se sabe, são ambos retirados directamente da Natureza e nada transgénicos (hoje estou assim). Não fui ver a composição, mas nem preciso: os sabores de ambos estão lá, intensos e refinados, puros e simples. E como é que eu sei a que é que sabe o sabonete Lux? Hummm, não sei se revele. Vá que dou uma pista: eu fui uma criança muito curiosa. Quanto ao sabor do Super Pop, posso também afirmar que soprei muita bola de sabão nesta vida, e algum dele, Super Pop, me há-de ter chegado às papilas. Fui, portanto, também uma criança muito dinâmica/acidentada/adstringida (pumba! Mais um euro).
Continuando num registo sério: provem, é delicioso. Mesmo.

* ninguém me paga para isto

26/03/2016

Tenho sonhado com a sua voz

As pessoas partem aos bocados. Partem-nos aos poucos. Saem de nós por partes. 
A mim, tem-me feito falta a sua voz.
Por isso, sonho — com o tom, com o timbre, com a musicalidade —, mesmo que nunca cante nos meus sonhos. Nos sonhos não canta, mas ouço-lhe a música em todas as frases. Talvez por saber que eu ouço música, não canta. (E como cantava, e tanto cantava.) Não sei o que diz, não me lembro. Acordo de manhã, ou então de noite, e não retive uma única palavra do que lhe ouvi, mas a voz ficou-me, inteira, e ainda permanece, inquebrável e eterna, nos primeiros minutos do dia. Mesmo no sonho, é um sonho que fale, porque na realidade sei que isso já só em sonhos. Somo mentalmente todas as palavras que lhe ouvi nos últimos quase dois anos e não conto dez minutos de felicidade junta. 
Hoje bebi-lhe mais uns quantos silêncios. Ocorreu-me então que, se calhar, não ando a sonhar com a sua voz: enquanto durmo, ainda vem embalar-me o sono, ainda vem falar comigo, ainda vem dizer-me que está tudo bem - até mesmo quando, sufocada de lágrimas daquelas que só na adolescência e depois pela vida fora, me obrigava, carinhosamente, a beber um copo de água para as lágrimas irem embora, e depois me perfumava o cabelo e o contorno do rosto com água de colónia a cheirar a limão.
(Pode ser por isso que, ainda hoje, o meu perfume cheira a limão.)


25/03/2016

Diálogos à sombra # 19

O convívio comigo é sinuoso como uma dessas escarpas de onde podemos escorregar e partir os ossos todos, até ao metatarso, cá em baixo, na enseada. 
Saiu para um funeral, logo pela manhã, porque não é lá porque é sexta santa, ou feriado, ou porque não dá jeito, que as pessoas vão adiar morrer. Aliás, até é bastante consentâneo com o dia de hoje. Voltou horas mais tarde, e foi esse o momento em que eu resolvi travar um diálogo — travasse antes eu a língua, e o mundo viveria em paz.
- Então, o funeral, correu bem?
- Mas que pergunta é essa? Um funeral pode correr bem? E, já agora, pode correr mal?
- Pode. Corre bem, se corre tudo sem percalços. Corre mal, se alguém se larga a rir, se o caixão cai, se os herdeiros se pegam à bulha, se o morto, afinal, não está bem morto, eu sei lá... N hipóteses...
- Não, o meu cliente estava mesmo morto.
- Ai, o teu cliente morreu?
- Não, mas fomos ao funeral dele na mesma. 



A lei da compensação

Cheguei à nutricionista como sempre chego a todo o lado: de uma pontualidade que faria corar qualquer britânico antes da exposição solar. Comunicaram-me que ela tinha ido almoçar, e eu esperei dez minutos, durante os quais preparei o discurso para lhe anunciar que não voltava lá, por duas ordens de razões: primeira, porque não tenho força de vontade nenhuma, e já não tenho por onde mais cortar no que como. Só se passar a comer milho cru, cocorocó. Segunda, porque pensei melhor e acho que estou contente comigo mesma, e, se melhorar, estraga, como diz aquele povo lusófono da América.
Ela apareceu e eu achei-a mais gorda. No intervalo entre os dois beijinhos que trocámos, senti-lhe o bafo a cozido à portuguesa, contra o meu bifinho de frango com grão e alface. Sosseguei o meu espírito atormentado com a possibilidade de o almoço dela ter sido, por uma questão de coerência, uma pratada de penca cozida, com uma cenourinha e um nabo, e nada de farinheiras nem outras delícias que tais.
Em compensação, ela achou-me mais magra. Encontrou-me menos um centímetro e meio na coxa (porque apertou melhor a fita métrica, estava a ver que me fazia explodir uma carótida das pernas), menos quinhentos gramas no peso (aparei as pontas do cabelo e cortei as unhas recentemente. E estive duas horas sem beber água antes de lá ir. Aprendam comigo, que eu não duro sempre), menos massa gorda e mais massa magra. Fez a caridade de não me medir os braços, pelo que continuo com a íntima convicção de que tenho os braços mais gordos do universo. Mais do que os dela e tudo.
Depois ficámos sentadas, uma diante da outra, eu a descrever o que como (e, essencialmente, o que não como) ao longo de um dia inteiro, ela com uma extrema e manifesta dificuldade em encontrar alternativas e supressões ao meu plano.
Levantei-me da cadeira, perdida a coragem para a despedir, ganha a certeza de que nunca na minha vida vou dar conselhos de educação alimentar (vulgo dieta, vulgo fome) a ninguém, porque isto dos gramas nas ancas é um Deus-tira-Deus-dá, que nunca se sabe se nos tira a nós para dar a outra, ou ao contrário. E vá de metro, ananás!

24/03/2016

Deslarguei esta frase # 34

Precisei de uma caneta e não encontrava nenhuma das 389 que trago na mala. Ela emprestou-me uma BIC, assinei o que tinha a assinar, e já me ia embora, de BIC na mão, quando ela me chamou a atenção, dizendo que a caneta lhe pertencia. E com a observação, Ainda se fosse uma Parker...

Por acaso, não. Mais depressa roubava uma BIC. É que sou alérgica aos metais, portanto, Montblanc, Sheaffer, Cross, Parker, Parkinson ou... Alzheimer, todas me deixam cheia de comichões. 

E parti, doce parola — tinha começado tão bem a frase, tinha que descambar para a bandalheira.


Santas amêndoas para todas

Gostar, gostar, mesmo a sério, qual amor carnal, eu gosto é das amêndoas lilases. São quase perfeitas, e este quase deve-se ao pequeno pormenor de não serem azuis. No entanto, não as posso comer, porque me desemagrecem, e, nesta altura do ano, eh lá, tudo menos isso. Para o mês que vem, ou daqui a escassos sessenta dias, ainda ia pastá-las para os areais, alojadas em todos os intervalos dos meus ossos, por sua vez enterrados em enxúndia. 
Ainda assim, porque nem tudo é perfeito (assinado: Nem Tudo), não resisti à tentação de comprar um mini-pacotinho, talvez duzentos graminhas, quase nada. Sei que as tive na secretária onde opero, durante uns dias. 
Se querem ficar magras, giras e suculentas, fazei como eu fiz: ide adquirir as vossas amêndoas ao LIDL*: metade vêm estragadas, o que é uma benesse. Como a probabilidade é de calhar uma podre amêndoa-sim-amêndoa-não, vai acontecer-vos o que me aconteceu a mim: à medida que as comia, também as cuspia, a este ritmo: amêndoa boa, amêndoa má, cospe, amêndoa boa, amêndoa má, cospe. Estão a ver? Naquele processo do cospe, tanto saíam vestígios de amêndoa má, como também de amêndoa boa, ou seja, neste momento, estou em perfeitas condições para poder afirmar que deitei abaixo um pacote (uhu!) de 200 gr. de amêndoas, e não pus no chispe nem um miligraminha para amostra. 

* ninguém me paga para me calar

Quando passas por ansiosa porque o teu interlocutor é um pastelão

Liguei-lhe às 9:30 da manhã, de um vulgaríssimo dia de semana. Precisava de lhe falar desde as 8:30, mas, por uma questão curial, esperei pelas 9 horas, e depois um pouco mais. Não me atendeu, disparou o voice mail e eu desliguei. Não faço aos outros o que não gosto que me façam a mim, e avalio o que farão com a minha mensagem de voz — o que eu faço com as deles.
Ligou-me passados menos de cinco minutos, a voz num arrasto:
- Bom dia... desculpe não ter atendido... mas é que eu... estava a dormir... — Bocejo, suspiro, expiração profunda. — E estava... a ver se conseguia... pôr o sono em dia...
[Em esforço, portanto. A ver se conseguia.]
[Mais dois bocejos. Ao contrário do que se diz, nem sempre os bocejos se contagiam. Mantive a boca fechada, só a abri para desbobinar.]
- Bom dia. Eu é que peço desculpas, não pensei...
- Pois... sabe... é que eu... estou de férias...
[De férias, sendo que trabalhamos no mesmo local, e ninguém está de férias.]
- Quero dizer... de semi-férias... mini... férias...
- Pois, OK. — E vá de desbobinar ao que ia, antes que ela me embalasse com aquela dormideira e me atingisse com a drunfa anestésica. Taca-taca-taca-taca, e o assunto ficou relatado em cerca de quê? Um minuto e meio, duzentas palavras.
[Bocejo profundo, suspiro intenso, expiração longa.]
- Sabe... acho-a... assim um bocadinho... ansiosa... está, não está...?

(Sai-me cada uma na rifa.)
(E sim, fiquei ansiosa — tentar a conversação com um empadão de batata, logo às 9:30 da manhã, não é para todos.)

23/03/2016

Alguém faz o favor de me explicar esta nova moda?

Andam mulheres, pelas ruas da minha cidade, passeando seus cães, com as pernas vestidas com meias de equitação.
Qual é a mensagem subliminar, que eu ainda não apanhei?
1. Deixei ali o cavalo nas cavalariças, e vim passear o Piloto;
2. Eu sou toda animais, 'tá a ver?;
3. Olhe que, para domesticar este grande querido, só à stickadaaaaa;
4. Este é o meu cavalo, parecendo que não. Chama-se Faíscaaa;
5. Adoro esta horse trend, e é só. Cavalos nem vê-los;
6. As meias são quentinhas e fazem-me umas pernas para lá de hard;
7. Eu também monto, a minha vida não é só isto;
8. Eu relincho.

Enquanto o mundo deambula como um louco, eu falo com os animais

E o meu coração dispara por nada. Não sei como é possível continuar vivo, se recebe os disparos que dispara, em ricochete, mesmo em cheio. Este constante sobressalto não pode fazer-lhe nada bem.
Cheguei a casa e não vi ninguém. Procurei pelas gatas.
(Também vou, muitas vezes, verificar se os passarinhos estão vivos. Obrigo-os a sair do fundo da gaiola, para os ver no poleiro, só para me certificar. Até parece que não sei que, se um deles resolver morrer, até o bebedouro lhe serve de último poiso. Mas fico mais descansada quando, assustados com o meu Ei, passarinhos!, em voz de comando militar — ou de mãe em pânico, que é quase igual —, aparecem, em alvoroço.)
A gata pequena, dormia. A grande, estava deitada em cima da manta dela, mesmo ao lado do aquecimento. Quieta, e de olhos abertos, parados. Fiquei, também eu, diante dela, quieta, e de olhos abertos, perscrutantes.
Olá, Mia.
E ela, nada. Os olhos, sobretudo os olhos, abertos, sem movimento.
(A Mel estava assim, quando a encontrámos, naquela manhã de sábado — deitada, parecia dormir, os olhos abertos, parados, a íris que fora dourada, transfeita negra.)
Estás bem, Mia?
(Será que eu espero que os animais me respondam? Estou bem, deixa-me em paz, ansiosa.)
(É proibido falar com os animais *)
Mia, estás bem?
E a bicha quieta. E muda. E surda.
Mia...
Perdida toda a coragem para verificar se o corpo estava arrefecido — aquela temperatura da Mel... — corri a casa e encontrei o rapaz.
- A Mia...
- O que é que tem?
- Está deitada e muito quieta. E tem os olhos abertos. E eu falei com ela, e ela não me respondeu. E...
O espelho diante de mim mostrava-me toda medo, os lábios descorados.
A gata envelhece todos os dias, assim como eu. Os períodos de descanso dela, a pouco e pouco, prolongam-se e acentuam-se, ao contrário dos meus.

~


* É proibido falar com os animais
(Conto de José Eduardo Agualusa)

João Abel dormia num banco do jardim. Acordava de manhã, muito cedo, e percorria a cidade inteira à procura de emprego. Regressava à noite, cansado, deitava-se no banco e adormecia. No meio do jardim havia uma jaula com macacos e rolinhas. Todas as manhãs João Abel parava em frente à jaula e via a placa. Estava presa em cima da porta e dizia: “É proibido conversar com os animais”.
O rapaz achava aquilo muito estranho. Os animais falam? Não, não falam. Os cães ladram, as vacas mugem, os gatos miam, os passarinhos trinam, gorjeiam, piam ou cantam; as abelhas zumbem, os grilos trilam, os lobos uivam, as rãs coaxam, os porcos grunhem, os cavalos relincham, as hienas gargalham, os leões rugem, os burros zurram, as baleias bufam, as cabras balem e os elefantes (aposto que não sabem) os elefantes bramam. Já os macacos, assobiam. E as rolas? As rolas arrulham. Falar, articular palavras, ordenar as palavras numa frase que tenha sentido, isso nem os papagaios conseguem fazer. Só os Homens.
“É proibido conversar com os animais”. João Abel achava aquilo tão estúpido quanto colocar um aviso no meio do jardim: “É proibido conversar com as magnólias”. Ou com as pedras, as nuvens, as paredes.
Por outro lado, supondo que os bichos na jaula realmente falassem, por que diabo não podiam as pessoas conversar com eles?
Se aquela placa não estivesse ali nunca lhe ocorreria a possibilidade de conversar com os animais. Assim, de todas as vezes que lia a estranha advertência João Abel ficava com vontade de se dirigir às rolas e aos macaquinhos. Porém tinha medo que alguém o visse. Além disso não sabia muito bem o que dizer. Não se lembrava de nenhum assunto que pudesse interessar ao mesmo tempo a rapazes, rolas e macacos.
Uma manhã acordou decidido a esclarecer aquele assunto. A única forma de saber se os animais falavam era falando com eles. Um belo sol de verão levantava-se sobre o jardim. O rapaz encheu-se de coragem:
- Vocês falam? – Perguntou. – Vocês podem falar?!
As rolas ignoraram a pergunta. Continuaram aos pulinhos, de poleiro em poleiro, ou esvoaçando através da jaula. João Abel teve a impressão de que uma delas dissera qualquer coisa – “estou rouca, estou rouca” -, mas não parecia ser com ele. Os macacos, esses, permaneceram estendidos ao sol, preguiçosamente, fazendo cafuné na cabeça uns dos outros.
João Abel repetiu a pergunta, mais alto, e nesse momento sentiu que alguém lhe agarrava os ombros.
- Não sabe ler?
O rapaz voltou-se, assustado, e viu à sua frente um velho de longos cabelos brancos. Antes que tivesse tempo para dizer alguma coisa o velho continuou:
- Eu escrevi esse letreiro.
Não estava zangado. Pelo contrário, parecia feliz.
- A maior parte das pessoas aceita qualquer coisa sem fazer perguntas – explicou o velho.
– Eu queria encontrar alguém que não tivesse medo de contrariar regras estúpidas. Alguém inteligente e curioso, porque a curiosidade é que faz mover o mundo.
O velho não tinha filhos. Era muito rico e não sabia a quem deixar a sua fortuna.
- Não quer trabalhar comigo?
Tudo o que João Abel queria era trabalhar. Aquele encontro mudou a sua vida. Aos domingos, porém, costuma ainda passear pelo jardim. A placa continua presa à gaiola. As pessoas lêem o aviso, encolhem os ombros, algumas riem-se, mas poucas se atrevem a contrariar a proibição. Mesmo que as rolas falem elas nunca irão saber.

22/03/2016

Intraduzível

É a segunda vez, em quatro meses, que a palavra
tristesse
não tem tradução para qualquer outra língua.


Mesmo que eu quisesse escrever poesia,

não me deixavam. Até porque não sei. Não pesco da métrica, nem da rima. Não tenho em mim imagens bonitas o suficiente para as transformar em algo mais do que uma tosca prosa, de gente apressada, pouco alerta às coisas do mundo, demasiado atenta às singularidades irrelevantes do redor. 
Vem isto a propósito de ontem. Caiu uma granizada em Lisboa, que parecia um daqueles sumos que dantes se faziam nas falecidas croissanterias. Eu gostava do granizado de mentol. Era verde, o mais próximo possível de azul, e sabia a hortelã, que a minha Titi punha nas saladas de alface e as deixava a saber a brincadeiras da infância e a Alentejo no Verão.
O meu carro ficou com gelo branco no vidro da frente e no de trás, e, no meu percurso, todas as ruas haviam sido pintadas como uma imensa passadeira de peões no sentido transverso, resultado da passagem dos rodados sobre o manto branco.
(Cá está, clara e transparente, a minha falta de sentido poético, mesmo quando descrevo imagens que a Natureza me fornece: "manto branco" deve ser a descrição mais cliché para neve e geadas.)
Ia a chegar ao local onde exerço, quando senti um cheiro intenso a alfazema no ar. O gelo, o frio, a água, a brisa, em conluio, potenciaram aquele aroma, que se sobrepôs ao da cidade, insondável, indefinível e inconfundível.
Ia eu toda cheia de Alentejo no Verão e alfazema na alma, e tinha que me esbarrar com um terrestre, que disparou, na minha direcção, à queima-roupa:
- Cheiras tão bem.
Cheiras tão bem, disse o terráqueo. O terra-a-terra, que não pode adivinhar que eu sou portuguesa — o que nem na língua que falo transparece —, e, por isso, prefiro heróis-do-mar.
- Não é de mim, é da rua. Cheira a alfazema, por causa do gelo.
Incapaz de entender as minhas pré-congeladas palavras, insistiu o térreo:
- Não é, não. És tu.
E eu, gelando por dentro, arrancada à força de um dos únicos momentos de reconciliação poética a que me pude dar ao luxo nos últimos oitenta anos, pensei, claramente: Ⅎῶῗ#Ѿ@-se!

21/03/2016

Quando alguém perde uma excelente oportunidade de ficar quieto/

Quando alguém perde uma excelente oportunidade de não ficar calada

Ainda do ginásio, que é o meu laboratório socio-antropo-cultural: ontem fui para lá, tinha aberto portas há pouco. Como sempre, inspeccionei onde é que se encontravam o senhor da mercearia, sua mulher e filho, para poder evitá-los. Quanto à mulher, posso dormir descansada, porque, para além de ser a que me incomoda menos, desapareceu do radar há semanas, o que pode apenas significar que os outros dois a asfixiaram, esquartejaram e meteram os bocadinhos todos em caixinhas Tupperware*, lá no armazém da mercearia, numa arca congeladora desactivada, mas ligada à tomada, que é para não cheirar.
Como não os encontrei em nenhum buraco daquela casa, ascendi à sala de cima, toda eu era ares de superioridade só por isso (na descida, dá-se a inferioridade, pelas mesmas razões). Lá chegada, constatei que tinha a sala só para mim — que podia fazer o pino, usar as máquinas o tempo que eu quisesse, deitar-me no estrado do supino e dormir (ou num dos colchões), tirar selfies estúpidas, ou tudo ao mesmo tempo, que ninguém teria nada a ver com, ou sequer dar por isso. Era eu a DDT, a dona daquilo tudo. A detonar.
Toda cumpridora, no entanto, amandei-me ao ergómetro. Já tinha remado 423 metros quando me surge o senhor da mercearia e se prostra precisamente diante de mim, eventualmente por uma questão de falta de espaço, já que a sala tem uns míseros quarenta metros quadrados.
É claro que tive que optar por utilizar o meu olhar à transparência — apesar de o homem ser opaco —, o meu olhar através, o meu olhar subitamente-interessada-no-tecto, o meu olhar a-sério-?
Mas o senhor não desarmava, que é como quem diz, não desmobilizava.
Então, resolveu exibir-se, espero que não para mim, mas também não estava nem estou a ver para quem mais — a menos que ele veja almas de outro mundo, ou não perceba, como a minha Molly, que o reflexo no espelho lhe pertence, nem eu sou aquelas duas giras. Pegou em duas medalhas de dez quilos cada uma, e espetou-as no pau dos halteres. Preparou-se todo, encheu o peito de ar, suspirou com os dentes cerrados, baixou-se, ajustou as manitas ao pau, voltou a empertigar a atarracada figurinha, concentrou-se, e lançou-se, quase de cabeça, aos halteres, os dois bracinhos muito esticados, o rabo muito espetado ao céu.
E não conseguiu levantar aquilo.
E eu, que podia largar os remos, esquecer Cacilhas, nadar até ele, e perguntar com uma vozinha de jantes de liga leve, "Quer ajuda?", não: continuei, estupidamente, a remar, sem paz.

* ninguém me paga para isto

As fronteiras da língua

Estou a explicar-lhe que não me estou a ver naquele papel. Que não me enquadro. Que me sinto uma outsider, ao fim de alguns meses ali dentro. Que não vejo o caminho a direito, nem vejo nenhuma luz lá ao fundo. Que preciso de uma candeia que vá à frente, para me iluminar duas vezes, a ver se, na encruzilhada em que me encontro, consigo tomar uma decisão, optar por uma via, que não me deixe margens para arrependimentos, uma vez que não poderei voltar atrás, naquela que tome para mim. 
E ouço como resposta:
- Eu, por exemplo, sei o que valo. E o que eu valo, basta-me.

20/03/2016

Ah, a doce liberdade de escrever ao domingo

É o que me apetecer. Melhor ainda, só ao sábado: poucas visitas, a pessoa estende-se ao comprido, esbornega-se em disparates, espraia-se à parva. Parece Carnaval, ninguém leva a mal.

Agora tenho uma gata com défice de atenção. Não que eu não lhe dê atenção suficiente, ou que haja alguma falha, em termos de horas, da nossa parte. A falha é dela. Tectónica.
Tem 12 semanas de vida, e ainda não conseguiu perceber que:
1. A própria cauda lhe pertence — e roda, e roda, e deita-se, e dobra-se, num afã para a apanhar, que dá gosto ver. Quando a apanha, morde-a. E continua sem perceber que aquele enguiço lhe pertence;
2. A própria sombra lhe pertence — e ataca-a, e atira-se, e salta no ar, e arqueia-se, e eriça-se, e assanha-se. A sombra mexe-se tanto como ela, que não consegue nem caçá-la, nem ser mais rápida do que ela, como o Lucky Luke. E são horas nisto, quando cai a noite na cidade, e a luz artificial banha cá o lar;
3. A própria imagem no espelho lhe pertence — e observa, mira, levanta a pata, toca com a pata no espelho, vai à volta, sai do quarto, para tentar perceber onde raios se esconde o outro gato, depois volta e irrita-se logo, porque, que diabo, está ali um gato que não sabe brincar, e, por isso, merece ser atacado. E isso corre-lhe sempre mal;
4. A Mia não é opção, lá do alto dos seus 7 anos de idade, e com um volume três vezes superior ao dela, para brincar às garraiadas académicas;
5. Eu não sou um poste de arranhação — e fico histérica, e bufo e grito e perco a noção, sobretudo quando, como hoje, com uns collants acabadinhos de estrear de novo, ela lhes enfiou as garras e ficaram com uma bonita janela aberta, de par em par, com vista sobre a cidade;
6. Os meus livros da mesa-de-cabeceira não são pranchas de surf/skimming/snowboard — vem de lá disparada, salta em cima de uma ponta do livro, derrapa até à outra ponta, fá-lo entrar em desequilíbrio, e vai tudo — o livro, toda a pilha de livros que está por baixo e ela — parar ao chão. Tem uma predilecção especial por este, que é grande.


A bicha deve ser poetisa. Ou escritora universal. Heterónima, ou assim.

We said goodbye and I didn't die a little

Ontem despilatei-me. Levanto-me eu mais cedo do que poderia, muito mais cedo do que o corpo carinhosamente me pede, a um sábado de manhã, careca de madrugar toda a semana, para chegar à aula de Pilates (sete minutos antes da hora!) e já não há senha? Cansei de não poder descansar. Cansei de ser sexy.
Disse a Andrecas que era o adeus, que a minha vida não é só aquilo, amigos como antes, foi bom enquanto durou, o problema não sou eu, é ele, e beca-beca. Ele é bom (profissionalmente falando), ele é muito bom (idem), ele é podres da bom (ibidem), mas eu também não sou má de todo, para ter que sustentar sozinha esta relação sem futuro, a porta da sala pejada de femedo faminto das aulas dele, ele a ter que escorraçar as excedentárias, e eu fazer parte da escorraça? Diz que na próxima época dá duas seguidas, porque o número de alunos tem vindo a aumentar, mas eu é que não vou para nova e não posso esperar pela próxima época, parada e de braços cruzados, que chegava a Setembro e toda eu era peles mortas e penduradas, e ainda emperrava das dobradiças, e, parecendo que não, à mulher de César não basta ser séria, e eu tenho uma imagem a defender, sonho acordada e alagada em suores com o dia em que me deite naqueles colchões e já só se ouça o chiar das minhas articulações, o latir de meus nervos a doer e meus ganires do escruciante que aquilo se tornará.

No entanto, e porque qualquer despedida dói, e ainda receosa da imagem da minha própria cútis em derrocada, fui-me ao ergómetro, cheia de raiva e outras doenças caninas, e dei-lhe uma tareia tão grande que só não fiquei toda negra porque as minhas dores são como as das malucas da psiquiatria: não se vêem. Transformei as duzentas remadas em duzentas e quarenta, para os mesmos mil metros, de modo que hoje me apetece deitar-me, dormir, mandar abater a tiros quem inventou a ginástica e rasgar o meu cartão, mas nem para isso tenho forças, que aquilo é de plástico.
Em vez disso, voltei lá hoje de manhã, dei mais uma carga daquele sinónimo de pancada que o povo usa ao ergómetro, e agora devia estar a trabalhar, porque os prazos apertam, como o calor.


19/03/2016

Sabes que hoje acordaste com oitenta anos quando

estás, muito mal, a almoçar num sítio onde já te levaram quase uma hora de vida a servir o prato principal — porque mesa para seis foi, desde sempre, aquele mistério insondável da hotelaria portuguesa, quanto mais mesa para sete, como hoje —, quando te aparece uma mulher, vinda lá dos fundilhos de uma copa qualquer, e pergunta para a tua geral, mas (porque há umas que gostam de sofrer) olhos-nos-olhos contigo:
O que é que vocês querem para sobremesa?,
e lhe respondes, olhos-nos-olhos com ela:
Vocês. A senhora quer saber o que é que eu já pedi ao senhor seu colega para sobremesa?
Dá-se o baque no coração dela, que é só o que pode explicar que ainda tenha teimado contigo — e tu com ela, que um teimoso nunca teima sozinho, a não ser que seja maluco, e tu, velha, mas maluca ainda nem por isso — que no menu constasse trouxas (no plural) de ovos, o que, afinal, tinha um nome conventual qualquer, que tu esqueceste imediatamente.
E não te sentes a tua avó.
Nem a avó da tua avó (tua trisavó).
~
A propósito, fui estudar.
Bisavô bis (dois) - segundo avô
Trisavô tri (três) - terceiro avô
Tetravô ou Tataravô tetra (quatro) - quarto avô

Quinto avô - No lugar de pentavô
Sexto avô - No lugar de hexavô
Sétimo avô - No lugar de heptavô
Oitavo avô - No lugar de octavô
Nono avô - No lugar de nonavô
Décimo avô - No lugar de decavô
~
A ver se ainda chego a decavó. É para isso que me ando a matar no ginásio. Para que as minhas decanetas se orgulhem de mim, ainda que, um dia ou outro, acorde com oitenta anos.



Por motivos que eu cá sei, mas, principalmente, por este



18/03/2016

Nem eu sei por que é que a véspera de todas as datas me dói mais

Telefono com alguma frequência aos irmãos do meu pai. 
Ligo à minha tia, sei-lhe dos netos, ouço-lhe da bisneta, rimo-nos muito porque a nossa Nana já é avó, ainda ontem era tão miúda, abanava o rabo em saias curtas e meias até ao joelho para os nossos filmes — mudos e de fita queimada —, que eram os filmes da nossa vida, em Super-8. A nossa Teresa nunca será avó, levou-lhe a vida o único filho e, com ele, toda uma família que podia ter sido e já não será. Falamos sempre do Luís, se fosse vivo, estaria um homem, seria pai, com toda a certeza. Depois, a minha tia repete-me ao ouvido a melodia que eu tanto preciso de ouvir, de todas as vezes que lhe telefono: Ai, rapariga, eu estou-te a ouvir e parece que ouço o teu pai.
Ligo ao meu tio, que me grita gritos de alegria do lado de lá, nunca me lembro de me ter atendido sem ser a gritar assim, Alô, rapariga!, mal me dá conta dos últimos episódios da vida, dos filhos, dos netos, uma viuvez, um divórcio, alguns nascimentos, nenhum baptizado, que disso não reza a história dele, e, entre mais gritos e gargalhadas, à despedida, a música para os meus ouvidos, Ai, rapariga, eu estou-te a ouvir e parece que ouço o teu pai.
Eu também lhes ligo para ouvir o meu pai.


Uma basquetebolista também nunca baixa os braços

*
Para quem, como eu, não acredita que um raio pode cair na mesma casa duas vezes, esta semana obtive a confirmação de que a excepção confirma a regra, que diz que não há regra sem excepção: um trabalho de multimédia composto por três mil fotografias, um programa de computador que estoira na montagem final, um prazo que não se cumpre, desilusão, nervos, uma nota negativa: um 9 — o 9 é a nota do limite, o quase-quase, 
Mas que injustiça, um 9 depois de um 18, se ela viu que eu fiz o trabalho, só não o pude acabar,
Olha que não, o 9 foi a nota máxima que ela te podia dar, repara que podia ter-te dado 1.
Mas há professores e professores,
Traz-me o trabalho amanhã, dou-te mais um dia.
Noite varada em cima do portátil, em casa da companheira de infortúnio. Mensagem, às 8 da manhã: 
Trabalho acabado, que seja o que a Céu quiser.
Que seja o que o céu quiser.
Eu já devo ter sido assim — repito-me, pela enésima vez, esta semana. 
Venham raios, que nós cá estamos para os parar.

* obviamente roubada

17/03/2016

O ouro acorda os mortos

Sei lá, achei este título giro. Parece de livro, contém mistério e atrai freguesia. 
Isto vem ainda a propósito do meu euromilhões que, parecendo que não, é um assunto.
Existe uma papelaria, na minha área de residência, cujos donos, um casal do qual não sei definir a idade — têm a mesma desde que eu por cá moro, já passou de vinte anos, pelo que penso que são vampiros —, trabalham ao balcão, com a ajuda, creio que remunerada, de uma empregada, que, assim como eles, também nunca mudou de idade, ou seja, que tem iguais probabilidades de ser, também ela, uma vampira. (Espero que eles tenham exactamente a mesma opinião que eu tenho sobre eles acerca de mim.) O caso é mais grave no caso da rapariga (mulher?), tendo em conta que, nestes últimos vinte e picos anos, casou, teve uma filha, a filha cresceu, e ela sempre assim, azeda e fria, o que confere com algumas regras da conservação dos corpos, pelo menos quanto às baixas temperaturas, já não digo quanto à acidez. Em relação ao casal, vejo-os de meia idade há décadas, ele totalmente morto — vagaroso, lento, parado, surdo — à vista de toda a gente menos da mulher, que o trata por "ó amor", ou será só à minha vista e ele, afinal, não é um vampiro, ou há vampiros que morrem mesmo e mantêm-se por cá pela Terra, por cá pelo bairro? Ela, de uma antipatia comovente, estimulante, rejuvenescedora. (Pode ser por lá ir com alguma frequência lidar com a Antipática que eu própria me mantenho com a aparência de uma criança pequena.) 
Portanto, de cada vez que vou registar o meu euromilhões, tenho o trio do Morto, da Antipática e da Azeda para enfrentar.
Dá-se que, na sexta-feira que passou, obtive um preminho no jogo. Escusais de vir cá com cunhas e gemidos, que já o gastei todo. Eu sou assim, esta mãos largas (e as costas também, mas para outras ocasiões), e acabo doando tudo o que possuo, ou quase tudo. Doo às lojas, doo aos romenos que me extorquem no parque de estacionamento, doo à EMEL, aquela empresa, doo, enfim, até que a bolsa me doa, e não é a de valores, pois que a minha anda sempre em desvalorização (quanto mais não seja porque a gata ma arranha).


Bom.
Merecedora de uma entrada em ombros (não confundir com carga de ombros), mas sem voluntários à altura (da ombreira), fui alevantar o meu prémio, e, por isso, adentrei-me, triunfante e impante, anunciando ao balcão:
- Venho aqui levantar o meu prémio. 
Este foi o momento em que tive a certeza de ter acordado o senhor Morto. Vi-o dar um pulinho vertical (podia ser para a frente, tá?), remelgar-me muito o olhar mortiço (não sei se deva continuar a utilizar palavras da mesma triste família), e exclamar:
- AH!
Era mais um movimento da parte dele, e era eu a gritar "Milagre! Deu-se um milagre! Sou santa!", mesmo que a cara me denuncie constantemente o contrário, não sei porquê. Mas atalhei, e esclareci:
- Ainda não é o primeiro.
Mas Morto estava ressuscitado da letargia, e quis entabular:
- Já vai no bom caminho...
E eu, que nunca me consigo calar a tempo de não me auto-sentenciar de morte (cruzes!), não resisti a desacordar mais o homem, e saí da papelaria, assinando uma daquelas promessas-leva-as-o-vento, diante de várias testemunhas (de entre as quais a Antipática e a Azeda):
- Fique descansado que, quando eu ganhar o euromilhões, também me lembro do Senhor.
(A linguagem verbal não tem maiúsculas. O Senhor.)
Fique descansado.


Diálogos à sombra # 18

- Joguei no euromilhões e posso estar rica sem saber. — Disse eu, exactamente o mesmo que digo, de todas as vezes que jogo e ainda não fui verificar os números. (Sou tão previsível.)
- Sabes que a probabilidade de te sair o euromilhões é inferior à probabilidade de te cair um raio em cima da cabeça?
- E sabes que a probabilidade de me cair um raio em cima da cabeça é inferior à de cair o avião onde eu vou, e, ainda assim, eu tenho medo? 
- Sei.
- Isso pode significar que acredito na ínfima probabilidade de me sair o euromilhões. 
- ...
- Ou seja, seguro, seguro, é uma pessoa meter-se num avião para ir à papelaria da esquina jogar no euromilhões. 

[Não fui de avião. Ainda não foi desta.]

16/03/2016

Fui ao espaço e trouxe um CD

Vais à FNAC. Queres um CD que meteste na moleirinha que queres e queres e queres, para meter no leitor do carro (que não passas os dias metida no youtube, nem a sacar cenas pelo songr, e há lá uma música que te baila em repeat há dias e dias e dias — eu própria, já em repeat and repeat — e queres tê-la e tê-la e tê-la, para a ouvires e ouvires e ouvires, mesmo e sobretudo quando vais a enervar-te com a condução dos outros, que senhores nos acudam). Encontras uma alma gémea que, não só sabe do que falas quando lho perguntas, como também lhe brilham dois olhos (azuis) no meio da cabeça, toda ela pele sem pêlo. A procura no computador revela-se infrutífera, não há e não há e não há, a editora parou de distribuir, parou de promover, parou. Está rica e cheia de trabalho, Não promove discos que vendem vinte exemplares. Sugere-te, então, o Amazon. Ris-te quando respondes que, se te fartares da procura, transformas-te em pirata e sacas as músicas todas daquele álbum (cada uma a 10 segundos de distância de ti), e pregas com elas num CD. A tua alma gémea e o colega, entretanto solidário com o teu apurado gosto musical e com a frustração do teu intento, riem também, cúmplices. 
Chegas a casa, ebay Reino Unido, CD mais portes, € 7,65. 
Foi só um clique, sem mais bater de pernas, nem de pestanas, sem piratarias, sem sair do Espaço Comum, nem do meu espaço. O CD estava no espaço da nettinha, à minha espera.
Óié, agora é meu.


Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 37

Enfrento dúvidas: dúvidas, se a minha vista continua com 0,25 dioptrias; dúvidas, se o que estou a ver é mesmo o que parece; dúvidas, se o acordo ortográfico está a ser aplicado ou não; dúvidas, se o circunflexo não estava lá tão bem instalado em cima do O.
Vejo uma coisa castanha, para botar na terra, chamada substrato de coco, e o que é que se me afigura, assim de relance? Cocó. 
Tiraram-me o circunflexo ao primeiro O do côco, e eu nunca mais fui capaz de comer nada com côco, não vá dar-se o caso. 
E o que eu adoro coco.

Num ALDI, não muito perto, nem muito longe de mim

A felicidade faz-se de pequenos nadas # 2

Receber este envelope. Ver esta carinha. Vacinar uma criança por dia — trezentas e sessenta e cinco (trezentas e sessenta e seis, este ano) crianças vacinadas por ano. 
Não sou melhor do que ninguém, é verdade, but I do really care, e isso pode fazer toda a diferença. 
São 10 euros por mês, 33 cêntimos por dia — menos meio café, menos um cigarro e meio por dia. 
Podia bem ficar parada —, que estaria a caminhar —, sem fazer nada —, que estaria a fazer tudo —, sem mover uma palha —, que estaria a mover uma montanha —, sem sequer mexer as pálpebras —, que, ainda assim, teria os olhos bem abertos, e operaria a mudança: estaria a plantar a minha pegada desde a planta.
E tu, fazes o quê?


15/03/2016

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 36

Por mais anos que passem sobre esta velha carcaça, há mesmo coisas que nunca mudam. O momento da compra de pepinos é uma delas. Nunca é tranquilo e pacífico, nunca pode ser um pouco menos que hard.
Se já não bastava uma vez ter pedido, triunfante, numa mercearia perto de mim, um rabo com nama, hoje atingi o pleno no momento em que entrei e declarei, derrotada,

Esqueci-me de pepir pedinos.

Vá que me ri de mim mesma, como os malucos, e fui então para o exterior, onde se encontravam os pepininhos. E o diminutivo não é por acaso, calha que eram mesmo pequenos — embora não baby, que são o equivalente a tomates cherry; aqueles que são usados para pickles, não sei se estão a visionar. 
Já cá fora, deparo-me com um homem, assim com ar de quem não tinha nada para fazer, a quem perguntei:
- Está a atender?
E que me respondeu a grande idiossincrasia:
- Se a senhora quiser...
Deu-se que eu queria. À distância, já me tinha apercebido que os pepinos que se encontravam no caixote eram todos pequenos e com ar de já terem tido melhores dias. Foi por isso que entabulei com o idiossincrático um monólogo completamente ingénuo, porém — e por versar sobre o assunto pepinos, que, ele sim, nada tem de inocente —, todo ele pontilhado de erotismo e chanchada, enquanto, com a ajuda dele, escolhia os frutos mais capazes:
- Ai, são tão pequeninos, vou ter que levar dois, que isto só um não me serve para nada.
- Parecem-me um bocadinho mirrados, até ao toque se sente.
- Deixe-me cá ver se encontro dois que estejam mais rijos, que isto é uma desgraça.
E assim, com conjecturas deste calibre, logrei trazer para casa dois — embora pequenos —, belos pepinos.

Uma bailarina nunca baixa os braços

*
Era toda olhos e ar preso na garganta, quando me apareceu e me disse que o programa de desenho, onde tinha praticamente acabado um trabalho com prazo para dali a dois dias, tinha crashado e o documento tinha ido todo ao ar
- Chora, filha! — Implorei, por considerar que, nas lágrimas, se encontra a única lavagem de alma possível contra tristezas, injustiças e raivas. E este era caso para tanto, de todas elas. Mas a fibra dela pode não ser a minha, ou então eu também já fui assim e não me lembro. Era um olhar de cristal, aquele dela, duas pérolas negras a lutar contra uma adversidade com um tamanho tão maior do que o dela, menina que ficou pequenina, para sempre menina. 
Não houve truque, recurso a oráculos, programa de recuperação, mezinha nem reza que recuperassem o desenho, expressão de horas de esforço e empenho — e também de qualquer coisa de muito mais intangível, que são o talento e a dedicação empregues numa obra de arte. 
Mais à tarde, enviou-me uma mensagem, anunciando que tinha chegado ao ballet. E que já tinha o esboço de outro trabalho, desta vez elaborado numa plataforma diferente e, convenhamos, mais segura: papel, tão-só. E que, assim, iria apresentá-lo no dia em que o deveria fazer.
Pela segunda vez no mesmo dia me questionei se aquela fibra será a minha, que facilmente me derrubo e me encosto ao drama e ao luto, e levo cada vez mais tempo a acordar dos meus KOs. Ou então, eu também já fui assim e não me lembro.

* evidentemente roubada

14/03/2016

Linkedin, linkedout

Estava eu muito bem dentro do meu Linkedin, quando fui esbarrar-me no sector descobertas, ou seja, no separador "Pessoas que talvez você conheça". Por acaso, das trezentas (que eram mais, mas à terceira centena cansei-me) sugeridas, só conhecia três. Ainda assim, não pedi conexão a nenhuma delas. Estava demasiado varada com o que estava a assistir, isto é, com a forma como as pessoas se apresentam às possíveis entidades patronais e ou conhecimentos nesse sector. 
Comecemos por assentar já aqui que o Linkedin é um site profissional. E que, em princípio, não é para professionais do séquiço.
Refiro-me às fotografias de perfil. Existem as normais, as aceitáveis, a cores ou a preto e branco, em que as pessoas se apresentam com maior ou menor sorriso, mais bem tiradas, mais mal, caras bonitas e outras menos, mas isso faz parte da vida. E depois existe o resto. E, nesse resto, senti-me mesmo compelida a fazer exercícios relativos à intenção de cada um, ao pôr uma fotografia daquelas. Porque, meus amigos, ou é isto, ou então não é nada.

1. Fotografia de casal — Hey, boss, eu sou casadinha. Escusas de tentar o assédio, apesar de se ver logo que eu sou boa cumós trovões. Mas o meu Vítor Sérgio trata-te do sarampo se tentares a tentação comigo, óvistes?
2. De perfil e com óculos de sol — Querido chefe, eu, à segunda-feira, estou de ressaca e não respondo por mim. De caminho, também não te respondo a nada, que é para não dar raia.
3. De óculos de sol opacos — O meu estrabismo não pode ser impedimento a uma contratação. Quase não se nota, e o público está-se nas tintas. Também tenho dias em que o Fábio e eu lutamos lutas.
4. De perfil, praticamente de costas — Esta é a imagem que terás no dia em que me puseres na alheta. Antecipei-me, para te ires habituando.
5. De carro, com a cara cheia de sombras — Vou de carrinho.
6. Hiper-bronzeada, com um vestido de praia (profissão: advogada) — Eu sou assim todo o ano, um torresmo, uma tentação do diabo depois de passar pelo Inferno.
7. De perfil, com o cabelo a tapar a cara toda (toda, minha gente) — Ó eu pensativa. Eu sou pensativa. Eu penso. Eu passo os dias a pensar. Sou muito dinâmica. E proactiva. Mas penso. Mmmmmm.
8. Com o cachimbo na boca — Ó eu intelectual. Ó vocês a trabalhar.
9. Completamente despenteada/ drÓgada/ acabada de sair da cama (após luta com um gato selvagem/ um tarado sexual) — Hey, boss...
10. Na mota, com o capacete posto — Vou de mota. Sou um homem prevenido. Sou um homem. Tenho mota.
11. No restaurante, com gente sentada noutras mesas em pano de fundo — Isto sem subsídio de refeição, não temos acordo.
12. A sair de uma gruta (profissão: "À procura de novos desafios" — juro que vi) — 'Bora p'ós copos? 'Bora p'às putas? 'Bora fazer escalada de paredes? 'Bora comemorar os anos do coelho da Joana? 'Bora à merda?
13. A cara a aparecer no fundo de uma garrafa — Eu sou a verdade.
14. No meio de um parque de estacionamento — Ia aqui a passar e lembrei-me de fazer um perfil profissional.
15. À frente de um quadro a óleo — Eu pertenço a uma ordem profissional. Eu pertenço a uma elite. Eu pertenço.
16. Uma boneca de BD japonesa — 私は愚かです.

Agastada, mudei a minha própria foto de perfil. A anterior já tinha três anos, eu envelheci, cresci, mirrei, emagreci e engordei epicamente, além do que havia sido tirada minutos após a gaffe mais memorável que cometi na vida e ainda estava com brain freeze (e cara de "Hoje não foi um bom dia para me levantar da cama"). Tinha ao pescoço um colarzinho de flores havaianas e tudo (mas disfarcei-o no photoscape). 
Agora tenho lá uma selfie, tirada à balda, mas calhou que fiquei com cara de boneca japonesa, e achei que servia.

13/03/2016

You'll never walk alone

Disse-me que morreram dois adeptos do Borussia Dortmund em pleno jogo, de corações que não suportaram tanto amor por um clube.
E foram oitenta mil adeptos a cantarem you'll never walk alone, em coro, mãe.
A paixão pela música, que é, essencialmente, o hino do clube, foi imediata.


Deu-se este bocadinho no preciso momento em que trocava mensagens com um dos meus primos, acerca da recente morte do pai dele — meu tio de empréstimo que, na realidade, era meu primo direito.

You'll never walk alone, Primo.

Vernizes

Encontrei-a por acaso, numa rua da cidade onde moramos. Magra e tímida, ainda provinciana, mas já urbanizada, instrução básica cumprida, casada com o senhor doutor, todos os tiques da pequena cidade nortenha que lhe foi berço, num esforço constante por diluí-los aos seus próprios olhos. 
Conheci-a ainda os filhos eram pequenos, e ela uma fada do lar de corpo largo, justificado pelo parto de gémeos. Dias queimados ao ferro e ao fogão, costas dadas em sacrifício ao aspirador, braços entregues às limpezas, tudo em troca justa de cabeleireiro e roupa nova, e, se não boa vida, pelo menos uma vida boa. Trazia sempre as mãos encardidas pelos tachos, o verniz lascado — rosa-pérola —, num claro contraste com o todo que, quando trazia à rua, vinha tão arranjado. 
Depois voltei a vê-la, os filhos já crescidos e o senhor doutor enlouquecido de amores por outra, o corpo estreito, justificado pelo desgosto e pela cambalhota da vida. Os mesmos tiques, o mesmo sotaque, o mesmo pestanejar tremelicante a cada frase mais séria, as mesmas gargalhadinhas nervosas a cada pequena ironia. As mãos desencardidas, o verniz impecável — rosa-pérola, com brilhantinhos. 
Desta vez, disse-me
Nem lhe conto da minha vida.
Já percebi que voltou para ele,
respondi eu, que lhe adivinhei, nas mãos reencardidas pelos tachos, no verniz lascado — roxo —, o regresso ao lar do senhor doutor.
Aquilo foi um vaipe que lhe deu,
disse ela, o mesmo pestanejar tremelicante, 
O que interessa é que eu estou feliz com os meus filhos,
a mesma gargalhadinha nervosa.

Enquanto escrevo isto, observo as minhas próprias unhas, sempre cortadas muito curtas, o verniz sem lascas — vermelho-vivo —, dez pequenos fósforos incendiários. E pergunto-me quantas camadas de verniz me separam daquela mulher. 

12/03/2016

sábado


Those are the arms, beautiful when they hold me
Those are the words, poetry calls, it told me
I'm a willow, you can carve your name on me
We'll laugh about it at the bottom of the sea
These are the songs I'll never get to sing to you
Put them away, keep them until they ring true
I'm a fountain you can pure yourself in me
We'll laugh about it at the bottom of the sea


We drink the water
One day it hits the sand
We touch each other
One day we'll understand
We fall in love but we keep falling down, we
We fall right through a hundred million centuries


And that was the day you had me because I found you
These are the stars, perfect when they surround you
I'm a sparrow, can you hear my reverie
We'll laugh about it at the bottom of the sea


We drink the water
One day it hits the sand
We touch each other
One day we'll understand
We fall in love but we keep falling down, we
We fall right through a hundred million centuries

We drink the water
One day it hits the sand
We touch each other
One day we'll understand
We fall in love but we keep falling down, we
We fall right through a hundred million centuries


Cheese Pilates

É a segunda semana consecutiva que, mesmo chegando antes da hora, já não consigo tirar senha para a aula de Pilates. Em ambas as vezes, André teve que fazer uma enorme ginástica, não literal nem mental, mas estratégica e logística (não deixa de ser ginástica), para que as cinco ou seis pessoas sem senha ainda coubessem dentro da sala. Hoje já só conseguiu meter mais quatro pessoas, e eu era a quarta dos seis sem senha. 
Entrei, portanto, por uma unha negra. Porém, negras haviam de estar as unhas do meu companheiro de classe: foi sentar-me no colchão e teletransportar-me para uma fábrica de queijo flamengo. 
O ar condicionado virado para o quente — a sério que há quem tenha frio num ginásio? —, a porta fechada, e eu tinha que ir sentar-me, e depois deitar-me, precisamente ao pé — aí, sim, literalmente, pois a minha cabeça ficou a confinar com os pés dele — de um senhor que, para além de não ter lavado os pés nos últimos três anos, também não lavou as meias desde que as comprou, naquele saldo, há cinco anos.

Puseram-se-me, então, várias alternativas mentais:
1. Levantar-me e ir ocupar um dos dois colchões disponíveis no palco — não que me fizesse grande diferença ir para lá exibir-me, pois parece que isso já é um fado meu, simplesmente o outro colchão estava a ser ocupado por um senhor muito grisalho, e não me apeteceu criar-lhe constrangimentos por qualquer situação que pudesse assemelhar-se a isto:


2. Levantar-me e ir-me embora, com a desculpa de que me doía o nariz, do ar tão pesado;
3. Deixar-me ficar deitada e desatar a gemer que não aguentava mais o mau cheiro da minha cabeça;
4. Pedir uma mola de cabelo (piranha) emprestada e colocá-la no nariz;
5. Perguntar, para a geral, "Quem se peidou dos pés? Ponha o dedo do pé no ar!";
6. Dizer claramente ao senhor que tirasse as meias. E os pés. E os lançasse para longe.

Em vez de qualquer dessas hipóteses, aguentei firme e hirta como uma barra de ferro. E não chorei, como recomendava o arquitecto. Mas foi uma desconcentração, um cheese-cheese-cheese, que até acho que passei a aula toda a sorrir, convencida de que era a ordem para tirar o retrato.
Infelizmente, André esperou pelos três últimos minutos da aula, para nos dar um raspanete subordinado ao tema da higiene, que foi muito bem feito. Disse "odores", disse "pés", disse tudo, mas já disse tarde. Com isto quero dizer que não haverá uma próxima. Tenho ali guardada a mola de nariz da natação, que serve bem para nadar em seco, também.

(Ontem Lisboa foi invadida por trezentos camiões de suinicultores.)