29/02/2016

Oscars 2016 — sob o negro olho de Blue

Não contem comigo para esmiuçar estilos estilísticos (pleonasm alert!), tendências com nomenclaturas estrangeiras ou nomes de costureiros que toooda a gente conhece menos eu. Em relação à moda, designadamente à alta costura, eu estou como para o resto: what I see is what I like, ou nem tanto. A mim não me diz nada se for um Dior e for feio, nem um Oscar de La Renta lindíssimo que fica um trapo num mono ambulante que não o soube vestir. 
Portanto, e vamos lá a avançar com isto que já se faz tarde, excepção talvez apenas para a boa da Sofia, não me darei ao trabalho de apreciar vestidos bonitos que ficam bem a mulheres bonitas. Para isso, estão cá as outras. Eu apenas me dedico às meninas WTF are you wearing today? E nem sequer aos meninos, porque, como se sabe, eles, mais papillon, menos papillon, mais Armani, menos Saint Laurent, aquilo vai tudo dar ao mesmo. 
Por isso, dedico-me apenas às mais lindinhas do baile e já me dá muito trabalho. Visto o meu aventalinho, calço a tairoca preta, sento-me diante da máquina, e é ver-me. Note-se que há umas grandes queridas que estão repetidas porque, como boas cromas que são, depois da gala foram mudar de fato, e apareceram na party after all tomorrow is another day igualmente dignas de reparo — para o bem e para o mal.

Miss Proporções Baralhadas
drivados ao photoshop, tanto me tiraram na cintura
que fiquei com este melão de dar gosto aos gajos quando o clube
 deles perde em casa

Miss Ia a Sair do Duche 
quando me disseram para também vir

Miss Andei a Rebolar nas Folhas Caídas de Outono

Miss A Idade é Um Posto 
e ai de quem diga que a inspiração é japonesa,
que eu dou-lhe o sushi

Miss Venho de Mão na Anca 
a ver se é desta que o Leo leva o boneco
e não temos outro afundamento lá em casa

Miss Despido de Marca Cara

Miss Caguei e Andei,
este ano ninguém me vai amparar a queda

Miss Sou Gira,
posso vestir uma albarda qualquer
[é que não]

Miss Os Implantes andam a correr-me tão mal

Miss a Tesoura da Poda Fez-me esta Poda

Miss Hoje Veio-me o Período

Miss De Qualquer Maneira Vão Sempre Gritar Guida Scarlatti!

Miss Foi a Oysho que Pagou

Miss Vi Vezes a Mais E Tudo o Vento Levou
Se a Scarlett pode fazer aquilo com os cortinados...

Miss Posso Vestir o Que me Apetecer
[raio da gaja]

Miss Prova-Provada Em Como Não É Preciso Ser Magra e Gira Para Ser Das Mais Bem Vestidas 

Miss Se a Cólica Voltar, Tenho o Poliban Que me Tapa

 
Miss Geometria Descritiva

Miss O Tecido Estava num Saldo Imperdível

Miss O Império dos Sentidos

Miss Bilros

Miss Eu Gostava de Ser Gorda

[parva]

Miss Páginas Amarelas

Miss Bilros 2
Oh, I miss my japanese boy

Miss Sutiã Para Quê

Aquele momento em que te comunicam que a tua pele é escura e tu, em vez de ficares enxofrada de racismo, entendes a frase como um elogio

Já vi que a sua pele bronzeia com facilidade, por isso, no Verão, aconselho que faça as suas sessões [de depilação a laser] na nossa clínica ali de [e diz a zona], porque lá é que existe a máquina para peles escuras. 


28/02/2016

A felicidade faz-se de pequenos nadas

Trabalho num sítio onde há uma pessoa que diz rés-dos-chões. E, quando eu penso que ouvi mal, ou que ela se enganou, ela repete.
E depois, alguém diz à minha frente corrimãos. E isso faz-me retomar as esperanças na Humanidade.

Já não chego para as encomendas

Só não aparei o meu cabelo em casa, desta vez. Na verdade, fui acertá-lo, porque o tinha deixado desencontrado, da última vez que lhe meti a tesoura. Devia reservar essa tarefa sempre, e sem excepção, para a cabeleireira. Mas, ao invés, também pinto o meu cabelo em casa. Por isso, às vezes anda manchado, mais escuro nuns lados do que nos outros. 
Também sou eu quem arranja e pinta as próprias (vinte) unhas. Devia deixar isso para a mani e a pedicure. 
E sou eu quem trata da própria depilação. 
Não entrego nada disto a ninguém. Qualquer dia, faço auto-massagem, auto-medicação e lavagem auto. E ainda fabrico os meus sapatos e tricoto as minhas vestes. 
Hoje levantei-me da cama e tentei arranjar o meu computador. Fiz tudo como o C. N. Gil receitou (obrigada, irmão, mais uma vez), mas o sacana do animal continuou cheio de tanatose. Refiro-me, evidentemente, ao computa. Só não lhe dei a extrema unção, configurada num golpe de kickboxing, porque já estava auto-escalada para ir desentupir o lava-loiça, que escoava o equivalente a um copo de água em cerca de cinco minutos. 
Desmontei aquela coisa toda, puxei a trampa que lá estava dentro — e juro que não dei uma de menina, nem um niquinho de regurgitação — e perdi as forças porque, afinal, sempre sou uma menina. Tomei um café e voltei a montar o puzzle tubos + roscas + anilhas de borracha. Entretanto, porque os tubos ainda deviam ter vestígios de soda cáustica lá dentro, deve ter-me saltado um grão da soda para a cara, que senti mesmo um fósforo aceso na bochecha, até me pareceu ouvir aquele grande maluco do Frollo a cantar é o fogo do inferno na minha carne a arder, e gritei mentalmente soda-se!, porque eu sou uma senhora. O grandessíssimo FDP do lava-loiça ficou muito mais bonito, mas continua entupido, pelo que há que chamar o técnico. 
Amanhã vou inscrever-me numa clínica de depilação a laser e já só de lá saio quando as minhas pernas parecerem um cu de menino (mas limpinho).
Fartei-me de ser auto.

27/02/2016

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 34


Estavam assim, cravejados de STOPs, pelo menos um terço dos cacifos do ginásio, hoje de manhã. Ora, conforme sabeis, o sinal de STOP significa se tens olhos, pára.

Seremos obrigados a arrombar o cacifo equivale a dizer seremos obrigados a dar-lhe um tiro num pé, ou noutro local à nossa escolha, pois tiro no pé é esta ameaça parva que nos apeteceu escrever aqui, à laia de Rambos da periferia.

É certo que a ocupação de um cacifo se deve limitar ao seu uso enquanto o freguês permanece no ginásio, e não dias inteiros, como estavam todos aqueles. O seu aluguer, que é temporário e restrito ao tempo de duração de um treino seguido de banho, está previsto algures no pagamento da mensalidade. O que não está previsto, com toda a certeza, é o seu arrombamento em caso de utilização abusiva. E, ainda que o estivesse, não poderia estar, ou seja, seria uma previsão nula, porque ilegal. Onde é que já se viu resolver um assunto - qualquer assunto - com a prática de um crime? E, de caminho, com a prática de outro...


Artigo 298.º - (Arrombamento, escalamento e chaves falsas)

       1 - É arrombamento o rompimento, fractura ou destruição no todo ou em parte, de qualquer construção, que servir a fechar ou a impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou lugar fechado dela dependente, ou de móveis destinados a guardar quaisquer objectos.
       2 - É escalamento a introdução em casa ou lugar fechado, dela dependente, por telhados, portas, janelas, paredes ou por qualquer construção que sirva para fechar ou impedir a entrada ou passagem e, bem assim, por abertura subterrânea não destinada à entrada.
       3 - São consideradas chaves falsas:
              a) As imitadas, contrafeitas ou alteradas;
              b) As verdadeiras, quando, fortuita ou sub-repticiamente, estejam fora do poder de quem tiver o direito de as usar;
              c) As gazuas ou quaisquer instrumentos que possam servir para abrir fechaduras ou outros dispositivos de segurança.


Artigo 153.º - Ameaça

       1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 
       2 - O procedimento criminal depende de queixa.

No seguimento do post anterior

Eu tenho um post com 1000 leituras

Sois grandes. Não há pai p'ra vós.




26/02/2016

Eu sei que podia pegar no telemóvel e rebentar isto para três dígitos.

Mas prefiro que seja um de vocês a dar-me esse miminho.

Obrigada, môres. O post não é nada de transcendente, mas foi linkado por muitas pessoas de extrema bondade, e isso resultou neste mega-bomb. Quem tem um décimo disto, de leituras em cada post e, e nos melhores dias... fica mesmo feliz com uma tangente tão absoluta às mil leituras. Vamos à secante, vá lá...

Cá @s de beijinhos.


Purple rain

Não sei muito bem por que é que escolhi este título, quando me apetecia muito mais juntar a esta posta de pescada a música blue velvet.
Mas é que estou roxa. Roxa de frio, roxa de chuva, roxa dos nervos.
Acordei cedo e com a sona costumeira, e verifiquei que já me pagaram. Mas, como um mal nunca vem só, o cosmos anunciou-me, logo de seguida, que o meu computa morreu. Assim, a seco. A pessoa liga o botão e ele nem ai nem ui, quanto mais água vai. Não pude recorrer ao portátil — de onde agora vos escrevo este naco de vida — porque me ocorreu que ele anda há mais de uma semana sem antivírus e eu bem sei o que é aumentar a família inesperadamente só porque não se tomaram as precauções do manual. 
Vai daí, fui meter-me no cabeleireiro, porque precisava de aparar cerca de 2 centímetros, tarefa que cumpro religiosa e sacrificadamente duas vezes por ano. A vida não é justa, já dizia o Scar nos primeiros minutos d' O Rei Leão — enquanto só tenho que ir ao dentista uma vez por ano, verificar se há pedras (não sei que tanto diamante ou haxe procura ele na minha boca), em compensação, vejo-me obrigada a ir ao desbaste com uma cadência semestral. 
Assim, fui vítima de valentes molhas à ida para o carro, à saída do carro, à saída do cabeleireiro, à saída para ir à farmácia (eu bem digo que na prevenção é que está o truque), à saída da farmácia e à saída para voltar a casa (seis molhas, portanto. Hexamolhei-me). Tratou-se de uma chuva "tocada a vento", vulgo vendaval, que até o guarda-chuva revira do avesso, mesmo para encharcar um gajo.
Foram momentos em que me lembrei amiúde das palavras da loira da gabardine da Zara, Só depende de ti, Tu és capaz e o genital.
Sinto-me doente por antecipação. 
E, como agora só me apetece fazer o que me apetece (nomeadamente defecar para o facto de ter criado um pleonasmo desnecessário), vou mas é meter aqui a música que me apetece (olha agora...) meter e chiu, que agora vou tentar desamarrar este bode. 
(Não sei se já disse vezes suficientes que detesto chuva.) 
(Entretanto, comprei um antivírus para este, não vos preocupeides.) 
(E hei-de levar o outro ao Dr. PC. Mas só depois de levar a gata ao vet. A vida, para além de não ser justa, ainda é plena de prioridades. E de possibilidades.)

25/02/2016

Negra é a raiva

Saí do carro só, mesmo só, no parque de estacionamento, também ele deserto, apinhado de carros, mas o dia era claro. Carregava comigo a possibilidade, que se tornou diária, de o reencontrar, a ele, com a mão cheia de uma ameaça de pedra colhida do chão. Vi-o ao longe e logo desapareceu do horizonte. Devia ter sentido medo, porque até à distância vi o corpo enorme e esguio balançando uma morna que seria lá das terras dele, não fora a dele ficar mais a sul e ele não estar a fazer dança nenhuma, a não ser a involuntária da embriaguez. Peguei nas moedas, pequenas e poucas, e segui na direcção dele. Calças novas e pretas, casaco novo, bege, boa imitação de camelo, a mão — vazia — estendida ao encontro da minha — sem pedra —, negros eram os olhos dele e os meus quando se encontraram num segundo de raiva, 
Deixo-te extorquir-me este dinheiro para que não me apedrejes, 
Dá-me o dinheiro que me deves por eu permitir que aqui te atravesses sem te fazer mal, 
nem uma palavra, nem um bom dia, que o dia era escuro. 

My eyes, my eyes... my brain, my brain... my heart, my heart...

Não.
Estou a ponderar seriamente emigrar.
Eu não quero viver num país que trata as pessoas assim.

CM, hoje


24/02/2016

Raciocínios lógicos

Adoro amendoins.
Já tentei interceder junto do Além — embora não saiba muito bem onde fica. Nem muito mal —, para que, caso haja reencarnação, a minha se dê numa macaca (é importante o género).
A vida de galho em galho, a alimentar-me de amendoins (e de bananas, e também dos piolhos catados directamente do pêlo das crias), parece-me perfeita.
Os amendoins fazem com que me apareçam borbulhas.
Os amendoins fazem-me baixar a adolescência em cheio, ora na testa, ora numa bochecha (a zona é aleatória).
O que é que o cosmos me quer transmitir? 
Que tenho que me preparar psicologicamente, para quando for uma macaca adolescente?

Treino

Começas por remar mil metros, nem mais um, e convences-te que atravessaste o Tejo até Cacilhas, embora saibas que seria necessário um pouco mais do dobro da remada. Agarras-te aos cabos com estribo e és Cristo trinta vezes, e mais trinta, contas sessenta. Deitas-te na cadeira do dentista com o equivalente a cinco litros de leite em cada mão e eleva-los acima do teu nariz duas vezes quinze, contas trinta. Voltas aos estribos, puxas os cabos mais sessenta vezes, repartidas por duas, e subiste a um edifício de vinte andares (mas não te atiras lá de cima, because you don't believe you can fly). No entanto, pegas em seis pacotes de leite de um litro cada um, três para cada mão, e dás aos braços como um pássaro, trinta vezes, quinze vezes dois. Pões mais dois pacotes de leite em cada mão e baixas, ora uma perna, ora a outra, até o joelho quase-quase tocar no chão, mas sem tocar. Vais buscar uma palete de leite, ou uma criança com dez quilos, pega-la com os dois braços e baixas-te quarenta vezes, com um intervalo entre as primeiras e as últimas vinte. Pegas numa bola de ferro, com doze quilos, e repetes o que fizeste com a criança, evitando ceder ao desejo de a atirar contra o espelho que te revela em inestético esforço. Sobes um passeio inclinado a 60º durante oito longos minutos. Deitas-te em prancha, treinas o take off dez vezes quatro, são quarenta vezes. Ainda em prancha, levas um joelho ao peito trinta vezes, depois o outro, mais trinta. E surfas-te, a seco, durante quatro minutos, um de cada vez. 
No fim, podes alongar, que tens o treino feito e as forças acabadas. Ou as forças feitas e o treino acabado.

Eu tenho problemas com tudo # 11

Por motivos que até a razão desconhece (cá está uma simples fórmula de começar a relatar um episódio desinteressante, sem ter que lhe explicar os porquês — a vós e a mim própria), fui dar comigo numa palestra sobre motivação. 
Começou logo bem, tendo em conta que cheguei magistralmente atrasada, por ter feito uma das minhas confusões com o horário do início — achei que começava duas horas mais tarde (e também não me posso esquecer de tomar os comprimidos para a memória). Quando fui avisada do meu atraso, somei-lhe o percurso de nove quilómetros pejadinhos de semáforos, e vá que consegui chegar exactamente a meio da palestra. A minha pontualidade é hispano-britânica, tem estes dois extremos: ou chego na hora exacta, ou, quando me vejo irremediavelmente atrasada, entro em modo llega quando llega, e relaxo de tal forma que sou capaz de já só aparecer para bater as palmas da apoteose (e agradeçam-mas, que podia nem ter ido).
Foi bom ter chegado no primeiro minuto do resto daquela seca. 
No palco, uma mulher loira gritava palavras e frases de ordem, vestida com uma gabardine da Zara (eu sei, porque tenho uma igual), e botas altas de carneira bege: Tu consegues, Só depende de ti, A diferença entre o bom e o óptimo é um tiquinho assim (e fazia o gesto do Danoninho, sei lá se patrocinada), enquanto projectava uns powerpoints muito queimados, com mais frases motivacionais, em vários estilos de word art, e, a sobrepor-se, a legendagem em espanhol da música Imagine, com imagens de fundo de John Lennon e Yoko. 
Eu sou demasiado crítica e estúpida para me sentir motivada com este tipo de inputs. Dêem-me um gelado do Santini (brigadeiro e pistachio, sff), dêem-me uma boa gargalhada, dêem-me um bom texto para eu ler, e ter-me-ão motivada para percorrer montanhas e derrubar caminhos (óié). 
No entanto, motivei-me: agarrei-me a chico, o smart, e, juntos, atravessámos o tempo que faltava para a palestra acabar.
No preciso momento em que a loira chamou a plateia para o palco, para partir placas de madeira com uma só mão (numa de provar tu-acreditas-tu-és-capaz), e acorreram cerca de cem pessoas ao chamamento da guru, icei o códril da cadeira onde há pouco o havia assentado, e fui-me, por temer que chegasse a minha vez de partir a tábua, e também não me estava a apetecer parti-la só em duas, e só em cima daquele estrado.
Fui a última a chegar, mas, em compensação, também a primeira a sair. Extremamente motivada para não voltar a cair em esparrelas destas

23/02/2016

Mais vale ser engraçado, que pode ser que se caia em graça

Uma pessoa tem que estar num local a uma hora. Escreve a morada num papel, guarda-o muito bem, senta-se no carro e apercebe-se de que perdeu o papel. Mas, vá-se lá saber porquê, decorou a morada. Chega ao local, de forma absurdamente pontual, onde vão estar mais duas pessoas, uma delas colega de trabalho. Não está lá ninguém, pelo que envia mensagem ao colega a perguntar se demora. O colega liga imediatamente, mas a pessoa assume que quem ligou foi a outra pessoa com quem ambos se vão encontrar. E diz-lhe "Estou aqui à espera do meu colega". Quando ele responde "Qual colega?", a pessoa percebe que é com o colega que está a falar. A terceira pessoa chega entretanto, e a pessoa trava conversa de circunstância, para travar o ímpeto de fugir dali. Conta-lhe da confusão de telefonemas e a terceira pessoa ri-se. O colega chega, a pessoa dá-lhe uma traulitada no telemóvel, que é um ai-não-sei-quê, mas que comprova ser aparelho para dar três mortais encarpados à retaguarda, estatelar-se na calçada portuguesa e não se partir nem se abrir em dez (comprem aquela porra, que aquilo não parte nem debaixo de uma compactadora de solo). O colega agarra no ai-não-sei-quê com cara de "Vamos lá a ver se isto também é inquebrável contra a tua dentadura", enquanto a pessoa se desfaz em desculpas e a terceira pessoa se ri.
No final do encontro, a terceira pessoa vira-se para a pessoa e, por qualquer motivo que lhe escapa, diz "Gostei muito do seu trabalho".


O gato da Tasmânia

Nesta altura das nossas vidas, creio que posso concluir sem grande margem de erro, mas com algum grau de certeza, que adoptámos, não uma gatinha, mas o diabo da Tasmânia. 

A criatura dá-lhe o trotil, a filoxera e o vaipe, corre, salta, trepa, cai, bate com a cabeça, persegue a própria cauda afanosamente, esconde-se de tocaia e dispara a jacto, como um míssil, para (nos) atacar, arranha, esgatanha, morde, atira-se, já de boca aberta, aos móveis, às roupas, às nossas pernas, às mãos, a tudo. Numa simples regra de três simples, está para o tamanho da Mia assim como um gato adulto está para um puma, mas, mesmo assim, teve o atrevimento de bufar à outra e de lhe levantar a pata no ar — o que lhe valeu uma sapatada da Mia, e dez segundos de papo para o ar, após voo picado, que foi um regalo para a vista, mas que não lhe serviu de emenda: o objectivo da figurinha é brincar, alcançar, morder, ou sei lá o quê fazer com a cauda da Mia. 
Isto é muito trágico. 
Eu tenho inúmeros arranhões, desde o peito dos pés até às mãos, passando pelas pernas, que ela entende serem postes de arranhação. Ontem estava a passar o meu creminho pernas abaixo e acima, quando reparei que estava a passar creme encarnado, como que encarnado pelo diabo (que chalaça tão boa, quem sabe não estou já afectada dos nervos?). Só depois é que percebi que estava a espalhar uma amálgama de creme mais sangue, que brotava alegremente de mais um arranhão dos dela. Mais tarde, percebi que tinha os collants colados (pleonasmo bilingue, hoje estou imparável) à perna, mas essa cola mais não era do que sangue do meu sangue. Quando os despi, à noite, parecia uma mártir da pátria, toda eu era chagas encarnadas que escorriam para os pés, como os rios correm para o mar.
Entretanto, cortei-lhe as unhas. O rapaz segurou-a, enquanto eu procedi à manicure (ou paticure, pois). Ele ficou com uma rede de arranhões nas duas mãos. 
Isto, só para terem uma ideia do que temos passado.
Não sei o que fazer.
Devolvo-a ao senhor que me chamava Maria Laranja?
Levo-a ao zoo e dou-a a conhecer aos primos?
Peço um sossega-leão à vet?
Compro mais Bepanthene?
Ofereço-lhe um mapa mundi, agrafo-lho ao lombo, e abro-lhe a porta de casa? (Nem preciso de lhe meter um foguete, que ela já o traz incorporado.)
Meto-a numa zona onde há muitos gatos de rua, a liderar aquilo tudo, porque ali está uma líder?
Compro material de dominação de leões e inauguro um número de circo com ela, quanto mais não seja para tirar algum provento disto tudo?
Arranjo-lhe um psicanalista/encantador de gatos/hipnotizador, e faço dela bibelot de psiché? (Ai, que giro, psicanalista-psiché. Eu hoje rebentei a escala, a tola e a bolha.)

O problema é que depois olho para ela, vejo o que ela realmente é — um gatinho bebé, de olhos azuis e ar manso —, e decido, pela enésima vez, adoptá-la.
Parva.





22/02/2016

Erros meus, má fortuna

Sei escrever, mas não sei ler. Sou, portanto, desanalfabeta. 
Escrevo com o maior esmero de que sou capaz, comprei mesmo um teclado especial, de teclas altas e poderosas, que é a minha inspiração maior, pois que quando posto pelo portátil ou por chico, o smart, me parece que não é igual, não sou a mesma, sai tudo de viés, que é como quem diz inviesado. 
Também não vou melhorar a forma como escrevo, porque o faço ao sabor da maré e ao correr da pena, que pena, que são estas vinte e sete teclas do teclado português, se não contarmos com as vírgulas — das quais abuso —, nem com os pontos finais — que me custam sempre a pôr. 
É muito, mas mesmo muito raro dar erros ortográficos. Não por ser mais sabichona do que qualquer pessoa, mas, eventualmente, por ser mais atenta: porque edito os meus textos e leio-me. E releio-me. Até me treleio (e invento neologismos), antes de publicar. E depois tetraleio-me, quando já publiquei. E reedito-me. Refaço-me, reinvento-me, reconstruo-me, a cada texto. Mesmo aqueles que sei que pouca gente vai ler (ao sábado e ao domingo, isto desce para metade, por conta do horário laboral, kudos e kisses para quem trabalha 9 to 5 — 5/7). Sou também mais chata do que todas as pessoas que conheço. Admito um transtorno obsessivo com erros de ortografia, uma compulsão maior do que eu, que me domina mais do que um vício, que me compele a largar tudo, agarrar num lápis encarnado (azul, não, por uma questão de coerência — política, também) e corrigir, à bruta, até partir o bico do lápis no ímpeto da emenda, pior que o soneto. 
Mas também já cometi erros. Já aconteceu virem aqui ao lindinho apontar-me o dedo a erros meus — tudo às claras, na caixa de comentários. E eu deixei, porque também gosto de sofrer e de me vitimizar, e de ser igual.
Outro dia cometi um erro. Foi neste post, e nesta frase: sem um espelho que reflicta os seus lados lunares. Ficou umas horas escrito sem um espelho que reflecta os seus lados lunares. Depois dei pelo erro sozinha, numa penta ou numa hexaleitura, e corrigi-o. Tinha, inicialmente, escrito sem um espelho a reflectir os seus lados lunares. Mudei o tempo verbal, alterei a terminação do verbo, mas não li com a devida atenção a frase toda, pelo que ficou publicada aquela bela coisa.
Ninguém me escreveu a dar conta do erro. Era sábado, eventualmente ninguém reparou, ou não quiseram dizer-me, nem na caixa nem por mail. Esse é outro dos impulsos que, aos poucos, tenho vindo a conseguir reprimir: o de mandar mail a avisar de um erro, ou de uma gralha, num texto que não é meu. Não por me achar a maior, ou para marcar posição enquanto (ainda mais) a Edite Estrela desta bola (ao menos, Linda Estrela), mas por saber que há quem use a caixa de comentários para o fazer, e nem sempre da forma mais simpática (basta dizer que o faz de forma a que toda a gente que lá passa leia). 
Ou seja, estou melhor, mas ainda não estou curada. Basta olhar para este post — que eu nem sei por que é que escrevi, e ficou todo o dia pendurado no bengaleiro dos rascunhos —, e perceber que todo ele é, em si mesmo, um grande erro.

Parábola das mãos

Era uma vez uma mulher que, embora não fosse cozinheira profissional, cozinhava sempre. Nunca havia sido ensinada nas artes culinárias, não gostava especialmente de cozinhar, mas, porque havia que se alimentar, a si e à sua grande família, fazia-o com a maior dedicação que as suas pouco hábeis mãos conseguiam alcançar. Apesar da evidente falta de dotes para o ofício, por amor ou por não terem termo de comparação (que é o que, muitas vezes, reforça o amor), a verdade é que o resultado que apresentava, diariamente, à mesa, era alvo de aplausos e ovações várias, mãos unidas em batidas sucessivas, homenageando as exímias mãos da mulher, as mãos da fada que produziam semelhantes iguarias, a cozinheira de improviso, mas de mão cheia que, dia após dia, se revelava naqueles pratos. 
A mulher recebeu, então, o cognome de A melhor cozinheira do mundo.
Mas um dia perdeu a mão: os condimentos deixaram de se ajustar aos paladares; os pratos deixaram de saber bem; as tentativas de variação e apuramento revelaram-se goradas. Os cozinhados d' A melhor cozinheira do mundo perderam o saber, perderam o sabor, e, com eles, perderam o melhor tempero, que é o amor.
Mudos os aplausos, destituída do título d' A melhor, a mulher perdeu as duas mãos: caíram por desuso, como qualquer corpo estranho, rejeitado pelo organismo.

— Fim —

21/02/2016

Branco-azul

O céu estava branco-azul, exactamente como o nome que tem a tinta que pintou as paredes da minha casa. Não era azul-céu, porque o azul-céu não grita assim.
No final da autoestrada, cinco carros misturados, gritos de lata quando há gente que não se magoou. 
Entrei sozinha e já não sabia entrar assim. Havia uma rola a arrulhar e uma gaivota a gritar — diz que as gaivotas grasnam, guincham, pipilam, mas aquela gritava, tempestade no mar, há uma criança no mar, e foi um medo. Já estava azul-cinzento, aquele céu de lá, junto ao mar de chumbo que havia de estar, de onde a gaivota dos gritos fugiu.
Encontrei-a de branco, lado a lado com o senhor que parece o meu pai. Hoje vi-lhe os pés e fiquei triste, porque percebi que a semelhança é a aproximação mais frágil daquilo que nos pode matar as saudades, mas não mata. Os pés dele são uns pés feios, e o meu pai tinha uns pés bonitos. Pareciam feitos de seda. 
Se calhar, eram.
Uma mulher gritava aiaiaiaiaiaiaiai, a este ritmo, sem respirar. E isso cortou-me a mim a respiração. Depois punha-se em pé e gritava mais aiaiaiaiaique-eucaio e sentava-se. Sei que não se calou nunca mais, porque continuei a ouvir-lhe os gritos. 
Nós duas, em silêncio, quando ficámos sós e rodeadas de pessoas e da mulher que gritava. Só as nossas mãos gritaram outra vez tua. E os nossos olhos também. 
Saí e já não havia azul. 
Deixei de ouvir os gritos da mulher que nunca mais se calou, os gritos da gaivota que fugiu do chumbo, mas sei que choveu desalmadamente quando voltei para o branco-azul das minhas paredes.

20/02/2016

Sabes que a Primavera não tarda nada quando:

Começas a apanhar choques eléctricos cada vez que fechas a porta do carro;
Te dá um ataque de limpezas, pegas em todas as cobertas de sofás e de camas da tua casa e disparas para a lavandaria self service;
Passas uma manhã inteira a lavar e a secar 8 cobertas;
Apanhas choques eléctricos nas máquinas todas, mas continuas;
Olhas para os cortinados da tua casa, achas-lhes um contraste triste com as capas dos sofás e dá-te outro ataque de limpezas: disparas para a lavandaria self service;
Passas a tarde inteira a lavar e a secar 12 cortinados;
Apanhas choques eléctricos nas máquinas todas, mas continuas;
Há uma senhora que se oferece para te ajudar a dobrar os cortinados, e enche-se de choques eléctricos também;
Dizes-lhe que é da fibra do teu vestido, embora saibas que é de um dos teus cortinados;
Ficas feliz simplesmente porque já não existe um contraste triste entre os sofás e os cortinados da tua casa.

Regresso às aulas

Após prolongada ausência e aturada reflexão (lembrei-me de que a última vez que fui a uma aula, ainda tinha outra idade. E foi noutro ano), hoje voltei a Pilates. Madruguei-me, fiz-me à estrada e aportei o boi à porta — passe o pleonasmo —, sob um céu azul, azul, da cor do céu. 



Apesar de ter chegado minutos antes do começo da aula, já não havia senha e a multidão à porta indicava-me claramente que era mais sensato desistir e ir à minha vida para outro canto menos populoso. No entanto, a sensatez nem sempre me assiste, dos fracos não reza a História, e fiquei. Eyelash power, um nico de beicinho e talvez André Pilateiro me mandasse buscar um colchão para me deitar nele.
Ainda assim, não foi preciso grande esforço em nenhum sentido. Ele chegou, mudou a aula para uma sala maior — hallelujah, irmãos, alguém raciocina naquela casa! —, de modo que ficámos todas muito mais à vontade para o esticanço e esperneanço. Digo todas porque éramos uma clara maioria de femedo, e o novo Acordo Ortográfico, que eu, irreverentemente, não sigo, dita que a maioria determina o género na construção da frase. (Portanto, eu tenho quatro filhas.)
André Pilateiro, um cavalheiro, disfarçou a alegria esfusiante, o entusiasmo desmedido, a loucura interior pelo meu regresso, com um meio sorriso à distância de cerca de seis metros (a distância, não o sorriso), e um acenar de mão cheio de significados.
A sala maior não tem espelho, o que é pena: uma pessoa não se manca, sem um espelho que reflicta os seus lados lunares. Por outro lado, o tecto é quase preto, e alguém colou umas estrelinhas de papel dourado junto às lâmpadas, de maneiras que houve uma altura em que entrei um nico na máquina do tempo e me vi na primeira vez que fui ao Planetário, com a escola (e entrei em órbita, acho que hiperbólica).
Agradeci ao tecto e às estrelas o facto de Pilateiro não me ter perguntado o motivo de tão longa ausência, pois só teria coisas estúpidas para lhe dizer: tive preguiça de acordar cedo ao sábado; a minha gata morreu e eu deixei de gostar de sábados de manhã; andei triste para acordar cedo ao sábado; choveu bastante.
A novidade maior foi termos uma aluna anglófona, o que revelou um Pilateiro de duas línguas: deu a aula toda em português e em inglês. Safa-se bastante bem, embora não traduza as piadas da praxe "as nádegas são as bolas de carne do lado oposto da bacia", ou outras curiosidades eróticas como "ponho a testa no púbis". Acho uma simpatia da parte dele ter o cuidado de traduzir a aula toda, mas, ao mesmo tempo, faz-me confusão que isso tenha que acontecer, porque me cheira a subserviência, e essa nunca tem um odor muito agradável. Parece que o povo português é o único romano, que em Roma o sê. Ou que os povos anglófonos são totalmente destituídos de capacidade de adaptação e aprendizagem: para onde quer que se desloquem, os outros é que têm que se desdobrar para se fazerem entender.
Fiquei com vontade de, na próxima aula, lhe dizer que só entendo italiano. Era língua que lhe assentava que nem uma luva, naquela voz dele, de Eros (Ramazzotti).

19/02/2016

Momentos de má memória, para mais tarde não recordar

Estás na rua, pretendes fazer uma despesa e resolves consultar o net banking via chico-smart. Amandas com o código de utilizador, que sabes de cor — achas tu —, mas, naquele preciso momento, surge-te uma dúvida quanto aos números que são logo a seguir às letras (estas são, nada menos, do que as iniciais do teu nome). Ele não reclama, pede-te três dígitos do código multicanal, que também sabes de cor — e esse, que é muito mais difícil de decorar, sabes mesmo —, mas ele diz-te que não, que assim não entras. 
Vais ao terminal de multibanco mais próximo, amandas com o cartão lá para dentro, pedes o saldo e constatas que não te pagaram.
Já não fazes a despesa.
No dia seguinte, repetes o que fizeste com chico-smart: código de utilizador + 3 dígitos do código multicanal, e ele nááá, menina não entra, parecia mesmo o clube do Bolinha. 


Amandas-te aos mil post-its que tens na secretária, cor-de-rosa, verdes, azuis, amarelos, dez mil números, dez mil apontamentos, mas em nenhum está o bendito código de utilizador. Sabes que é qualquer coisa como 0334, ou 0734. 
Amandas-te, então, à gaveta onde jazem mais trinta mil papelotes, alguns com seis anos de sepultura, encontras o que não procuras, mas nada da porra dos dígitos que seguem as tuas iniciais.
Algo frustrada, toda descompensada, fechas a gaveta, amandas-te de novo ao teclado e, sem pensar, digitas 07334.
E entras.
E não te pagaram.


18/02/2016

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 33

Não percebo critérios.

Primark
O cocó custa 3 euros, a sevilhana está em saldos, por 1/3. Não deve vender tão bem.

A geometria do amor

26.10.2004
... vinha desde a infantil com o rapaz ao colo. Apesar de a rua ser a descer, quando cheguei à primária lembrei-me da lenda de São Cristóvão, e disse à Ana que não sei como não percebo que o meu menino está cada vez mais pesado. Vínhamos aos beijinhos, porque a espera pela hora de saída dele hoje foi particularmente penosa. Eu tinha muitas saudades. Ele, nem tantas, mas acabou colaborando na pouca vergonha para e por eu o levar ao colo. 

Reprobus (Offerus) era filho de um rei pagão. Adquirindo tamanho e força extraordinárias com o tempo, Reprobus resolveu servir apenas aos mais fortes e bravos. Um dia, encontrou um eremita que o educou na fé cristã, baptizando-o. Reprobus recusou-se a jejuar e a rezar para Cristo, mas aceitou a tarefa de ajudar as pessoas a atravessar um rio perigoso, no qual muitos haviam morrido ao tentar fazer a travessia. Certo dia, Reprobus fez a travessia de uma criança que ficava cada vez mais pesada, de tal maneira que sentia como se o mundo inteiro estivesse sobre os seus ombros. Após a travessia, a criança revelou ser o Criador e o Redentor do mundo. Daí provém o nome Cristóvão, que significa "aquele que carrega Cristo". [fonte]

O caminho de terra batida, vegetação selvagem e pedrinhas soltas, que percorríamos, todos os dias, está agora alcatifado de cimento e ordenado de relva geométrica. Também nós nos organizámos de forma harmoniosa: quando lá passamos, a pé, fazemo-lo paralelamente, eu já não o carrego ao colo, já não há beijos. É o mesmo percurso que fazíamos desde o jardim de infância até à escola, onde apanhávamos as irmãs, e depois seguíamos para casa, um enorme grupinho. Por questões logísticas, e de geometria também, ia buscá-lo primeiro. Recebia-o num abraço que ainda hoje dura, levava-o pela mão até à porta do edifício, toda a pulsar de histórias — hoje marquei um golo, hoje caí no escorrega, hoje sujei a roupa com sopa, hoje a Fátima ralhou (muito ralhava aquela Fátima, ainda hoje se tolda o céu de cinzento quando a vejo passar) — hoje amo-te, amanhã amo-te, e, justamente à porta, do lado de fora, não aguentava mais de falta das forças que as saudades nos roubam, e carregava-o em peso até à escola, ele a cada passo meu mais pesado, eu a cada passo nosso mais leve.

Deixei-o na escola, muito mais longe de casa, agora vamos de carro. A voz é a de um homem, a cara a de um menino, acordado há pouco mais de meia hora. Fazemos o percurso paralelamente, eu já não o carrego ao colo, já não há beijos. Passo-lhe a mão no cabelo, depois na linha do rosto, ele sai do carro, desejo-lhe um dia feliz, e preparo o coração para as saudades que vêm aí. Ainda assim, há um compasso certo, por sabê-lo mais leve, a cada passo nosso.


17/02/2016

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar a passear à rua # 32

Sinceramente.

IKEA, zona infantil

Dia das minhas gatas

Hoje estava a observar o comportamento hiperactivo da Molly, a tentar lembrar-me se a Mel ou a Mia eram assim, a ver se percebia se aquilo se deve apenas ao facto de ser um bebé, ou se tenho em casa uma pequena terrorista, que a tudo trepa, em todos os cantos se mete, em tudo morde, de tudo se pendura para saltar (e depois fica presa por uma unha negra, metaforicamente falando, ou seja, por uma garra branca). Dizia, então, que noto a tristeza numa das minhas bonecas — para quem a Mel era tudo, a quem a Mel considerava tudo —, pelo facto de a Molly não se assemelhar em nada à Mel — o que, para mim, é um enorme alívio: não as queria parecidas, nem mesmo fisicamente. Procurei uma gata que não fosse preta (mau feitio), preta e branca (já tenho uma), castanha e preta (não sei explicar), branca (muitas vezes, são surdos, e, com uma gata agressiva em casa, não me pareceu boa ideia meter cá uma gata surda) ou amarela (iria sempre ver a Mel). 
~
Lembro-me das discussões, no quarto da maternidade, acerca das semelhanças do bebé com os parentes, É a cara do pai, Parece-se com a mãe, Acho que dá ares à tia, Lembra muito o seu pai — e de a minha titi ter ouvido aquilo tudo, calada, e ter dado a sua opinião, que foi de todas a mais sensata, quem sabe se não por ser ela o elemento mais idoso do grupo: Não se parece com ninguém, parece-se com ela mesma.
~
A Molly é a Molly, não é mais nenhum gato. E eu quero-a assim. Independentemente de poder vir a deixar de ter olhos azuis, de acalmar este ânimo infantil (ou não), de ser mais uma territorial como é a Mia, não a quero diferente. Por mais saudades que tenha da Mel, por mais falta que ela me faça, quero que a Molly não se pareça com nenhuma outra gata — mas que se pareça com ela mesma.



Das minhas associações de ideias # 10


Isto bate-me logo às 10 da manhã. 
Leio clínicas dentárias e branqueamento e interligo.
E depois imagino, sem querer, se nuestros hermanos dentistas son capaces de praticar una fraude en nuestros dientes, ya que los branquean tan limpio.

[Já o aviso amarelo não me deu mais associações com dentes — menos mal.]


16/02/2016

É tão pouco blogger da minha parte # 7


Estou na minha Ângela* a beber um cafezinho da paz e há um ecrã na minha visão periférica, que projecta, antes de perceber as imagens, o inconfundível acorde de violino, depois o tum-te-tum—tum-te-tum ainda mais inconfundível: Come on Eileen, Dexys Midnight Runners.

(Esta é bem a única música que tem um início que poderia ser um toque de telemóvel sem se parecer que se mora em Massamá e se veste fato de treino ao sábado. E ao domingo.)
(OK, esta e Suburbia, depois do ladrar dos cães. Ou mesmo durante, pois. Cada um sabe de si.)
(Não sei se já disse aqui vezes suficientes que vi Pet Shop Boys ao vivo e morri de amor eterno. Lá as peles, não sei, mas as vozes não envelheceram um dia, quanto mais vinte e cinco anos.)

Na altura não havia videoclips, eram telediscos, que davam na televisão ao domingo, pela cara e voz do Rui Pêgo, já nem me lembro do nome do programa, nem se era mesmo ele que o apresentava. 
A Eileen dos Dexis tinha este ar de ganda maluca, e eu houve ali uma época em que sonhei que a cabeleireira me tinha cortado o cabelo curto, e, no dia seguinte pela manhãzinha, fui lá ao salão dela, pedi para cortar como tinha a menina na capa de uma revista (havia de ser a Elle francesa, semanal, que a minha mãe lia, e da qual, naquela altura, eu só retirava maus exemplos como este), e depois passei um ano a querer que o cabelo me crescesse à força de tanto o puxar e alisar e deitar álcool no couro cabeludo, porque uma das minhas primas me convenceu que era o truque certo para que ele crescesse mais depressa, desconheço como é que não me emborrachava e nem ganhei o vício, muito frasco de puro a 90º despejei eu na cabeça por conta e risco da mezinha da prima. Sem vício, mas com trauma a cabeleireiras, desse nunca mais me tratei. E também a mania de me linkar a mim mesma, qualquer dia tenho que vestir uma camisa de forças, que isto anda um descontrole desde que descobri o botão link desta porra. 
O que é certo é que no Verão seguinte o cabelo já me dava pelos ombros e isso foi um alívio quase intestinal.
Enquanto não me chegou o pêlo ao ombro e andou pela venta, lembro-me de ter adoptado o estilo Eileen, para disfarçar a grande porcaria, já para não dizer aquele palavrão começado por m e acabado em erda, que tinha mandado fazer a mim mesma. Foi quase um ano a despentear-me de propósito, a meter na cabeça (literalmente) bandanas americanos, e depois a fazer um ar blasé que combinasse com o raio do penteado (vá, usei um eufemismo). Foi também um período da minha vida em que fiquei a saber como é ser sem-abrigo sem o ser: alguns dias, hei-de ter exagerado no outfit wild-parva, que ainda hoje recordo, não sem alguma angústia, o momento em que chegava à paragem do autocarro e as velhinhas verificavam o fecho da mala e se encolhiam aos molhos para o canto do vidro, subitamente cheias de frio (mesmo no Verão).
Isto tudo foram flashbacks, memórias elefantinas, repuxadas das pontas do neurónio sobrevivo, só por ter visto e ouvido o clip dos Dexis.
Já não se pode ir à bica sossegada. 

——————————
* eu devia fazer link para este meu post, que foi o mais lido de sempre, graças às várias linkagens que sofreu, embora seja dos mais nhééé. Está quase nas mil leituras, todos os dias lá vou ver e tem mais uma ou duas. Vai chegar o dia em que aparece com três dígitos e eu faço um post de homenagem a mim mesma. 

Estou nas mãos de uma louca


15/02/2016

Era dia do amor

Era dia dos namorados, e eles nunca o comemoraram. Não era coisa do tempo deles, e eles celebravam nos dias todos de Fevereiro, mesmo quando eram vinte e nove, e nos meses todos do ano. Dançavam you are my destiny e only you, na sala de casa, seguros e abandonados. E davam beijinhos à partida e à chegada, mesmo que entre uma e outra distassem poucas horas. 
Perdi a noção da noção, perdida ou não, que ainda guarda da existência dele. Não o quero esquecido — não o esqueço nunca mais —, imagino que o guardou num daqueles cantos da memória, íntimos e reservados, onde só fica o que não podemos recordar sem que nos doa até sangrar. Também não o quero lembrado à força, arrancado de alguma ferida nunca sarada, mote para motim interior. Prefiro imaginar que ainda dançam you are my destiny e only you, lá, onde ninguém os vê, outra vez na sala de casa, vinil atrás de vinil. 
Na estação de serviço onde abasteço veio-me à mão uma caixa vermelha de bombons em forma de coração, os bombons corações vermelhos, uns oito ou dez, era dia dos namorados.
Entrámos juntas, eu com a caixa vermelha, ela com bolo de São Valentim, deliciosamente recheado de frutos vermelhos, delicadamente coberto de branco-noiva e corações cor-de-rosa de açúcar. 
Também coincidimos nos olhos, quando nos perguntámos mutuamente e não nos respondemos, que memórias ainda guarda do namorado com quem nunca celebrou o São Valentim. 
~
Eram oito ou dez bombons, sobraram cinco, vieram comigo. Não pode ficar lá nada.
Distribuição fácil e equitativa, eu não quero nenhum. Voam corações, e há alguém, para além de mim, que dispensa o seu.
- Ainda há aqui um coração, posso comer? É de quem?
- Esse é da mãe.
- Meu, não é, que eu não fiquei com nenhum. 
- Posso comê-lo?
Fiquei a vê-la retirar a prata vermelha, mergulhada num daqueles meus pensamentos etéreos, submersa numa pequena felicidade, 
Já comeste, minha querida, já comeste — há dezassete anos.

14/02/2016

Namorados de papel

O Google é que se lembrou, eu apenas desenvolvo a ideia:

Mr. Kleenex, conhecido como o ombro amigo, o limpador de toda a lágrima, baba e ranho de qualquer desgosto de amor, oferece a Miss Papel Higiénico, uma caixa de bombons?
Fica o repto.

Velhas máximas sobre os homens que nunca ninguém me ouvirá dizer # 3

Os homens não servem para nada

Só quem nunca, como eu ainda há pouco, aflitinha que estava para abrir um frasco de tremoços, é que pode afirmar uma leviandade destas. No meu plano dietético estão previstos e não punidos os tremoços, aqueles que gozam da fama de marisco dos pobres, que eu acolho no meu pobre seio de pobre, quantas vezes de espírito, quantas vezes de nobre (isto não é verdade, mas rimava e a métrica é quem mais ordenha). 
Porque até me ajeito a desentupir canos e consigo não vomitar as tripas diante daquela papa preta, de nhanha e cabelos, com cheiro a inferno, que de lá extraio; 
Porque até lembro uma pistoleira a sério quando uso o berbequim;
Porque até prego pregos nas paredes (sem cair um naco de estuque para o chão e tudo), e amigos do senhorio que não tenho (o senhorio, que amigos acho que ainda me sobram), e aqueles preguinhos de plástico muito horríveis que se inventaram há uns anos, mesmo sem martelar a unha contra a parede; 
Porque até sei atarrachar para o lado certo e sei o que é uma chave de quatro. E sei desatarrachar, também; 
Porque até pinto paredes, com rolo e esmero, e trincha e preceito, pareço mesmo o Michelangelo, mal comparado.
Toca a abrir frascos, e eis-que-me assemelho logo a uma menina. Até coloco a manita esquerda, porque eles (os frascos) abrem para a esquerda, e faço força e respiro, força e respiro, qual puérpera em pleno Lamaze, tudo sem epidural, depois chamo reforços tão femininos quanto eu, ainda tenho que ouvir "Calma. Nós somos mulheres independentes", já eu desisti da independência, do separatismo e da guerra dos sexos em geral, e de provar o que não valho, a hora é de aflição, o tremoço boia à transparência do indescerrável frasco, é clamar pelo homem e aquilo são 3-2-1 segundos agarrado à tampa — e, subitamente, ela move-se.

Não sei explicar o que sinto por ele

*
Imagem obviamente palmada da nettinha
É azul;
Os desenhos são de Lisboa;
O interior da pulseira tem calçada portuguesa — enfim, lisboeta;
A presilha diz Lisboa de um lado e saudade do outro. 

Se me mandassem desenhar um Swatch — e me dessem o tema cidade, amor, casa, coração, berço, luz, eu, saudade, regresso —, era isto que eu desenhava. 
No entanto, não gosto completamente dele, mas não sei completamente porquê.
(Ou porque também nunca gosto completamente de tudo o que me sai das mãos.)

[* ninguém me paga para isto.]