30/04/2015

As coisas que eu vou desencantar ao baú...

Já em casa, a discussão continuou. Comecei com os clichés da praxe, Estás de castigo (conceito do qual desconheço o conteúdo, mas, mesmo assim, persisto na ameaça, in extremis), Vou contar ao teu pai, Já não levas o bay-blade, nem hoje nem amanhã (como é que é possível que a maternidade me tenha tornado tão estúpida e tão básica?), e ele a chorar cada vez mais. Mãe, desculpa, mãe, desculpa!. Deitou-se num cadeirão e começou a adormecer. Não quero que ele durma à tarde, senão à noite é um sarilho para adormecer. Abano-o, Não durmas, por favor!, ele acorda, volta a fechar os olhos, depois à noite não me deixas dormir a mim, vais às potrilhas para a minha cama!, ele abre e fecha logo os olhos, eu aproximo-me e a posição da cabecinha, abandonada no braço do sofá, as orelhinhas tão encostadas, amolecem-me a zanga. Lá vem a onda de ternura a passar por cima de mim sem dó nem piedade, aproximo-me mais e é o cheiro dele que me demove de o acordar mais uma vez. Pego-lhe ao colo, ele entreabre os olhos, entaramela não me compraste aquilo..., pois claro, lá onde ele está agora não se fala inglês, nem ele se pode lembrar do nome bay-blade. Levo-o para a cama dele, que tem grades e dali não cai, penso que vou ter um serão animado, cheiro-o mais uma vez, é a sabonete, a rebuçados, a leitinho, ou é a tudo misturado, é um bebé, é a bebé. Já tem quatro anos, mas é o meu bebé. Aquela imagem de tranquilidade transmite-se, invade-me toda e torna-me leviana – quero lá saber do serão.
 

29/04/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 7

Continente Telheiras - hoje
Vou?
Não vou?
Vou?
Não vou?
Devia ir. Também quero ser fashioner. Andaram os meus pais a gastar uma fortuna com a minha educação e não passo eu de uma parola, um pedregulho em bruto, com tudo (o que interessa) a aprender, ditado pelas bloggers. 
Ah, é sempre ao sábado? Em Julho? Olha que pena. Num qualquer sábado de Julho, às 6 da tarde, mais depressa me apanhavam a assistir e participar em animadas conversas com conceituadas bloggers no areal propriamente dito. Aí sim, é que era dar à língua, eu e as bloggers. Assim sendo, só se chover é que me apanham em Lisboa. Pois.
Então e só aprendo a vestir-me para a praia a 18 de Julho? E, até lá, o que vai ser de mim, sem saber o que vestir para ser ou parecer uma conceituada blogger fash?
E só aprendo a comer como deve (de) ser a 25? Ai, eu discordo. Depois chego às areias, em Agosto, a parecer uma sereia - metade mulher, metade baleia!
É melhor não ir.


Dúvidas que me assaltam à mão armada nos locais mais inóspitos

É a Nespresso outra vez.

Uma pessoa fica ali, com o cartãozinho maricas, à espera de vez, que até parece que está nas Finanças ou na Segurança Social, o monitor plim, A-251, o nosso é o A-389, ou talvez o B-174 e até julgamos que já passou a nossa vez, plim, não passou nada, nós somos A, plim. Aquilo a mim desperta-me a matemáticas aplicadas frustrada que há em mim, ponho-me logo a fazer contas, faltam 45 pessoas (por hipótese), estão dez balcões abertos, a média de demora no atendimento são cinco minutos a cada alma - cafezinho mariconso ao balcão incluído, posso ser útil em mais alguma questão? [Podes, desliza] -, dá para mais de vinte minutos de espera, não aguento, plim, vou para as lojas?, não, passa-me a vez e depois tenho que fazer o choradinho, plim. Nem sei como é que não me saiu o 69, avassaladora é a quantidade de vezes que o dispensador das senhas me distribui o magic number, cá para mim é um sinal e eu só duro até aos 69, ai, não, que já levo 84 no lombo, plim, visto assim, por este prisma - erecto, estou em pé - 69 no lombo até é pouco, já não morro nova.


Estou ali a observar aquelas milongas e mesuras, e não há vez que não fique assim parva e estúpida e camela e anormal a olhar para a parede, que fica atrás dos funcionários, onde está aquela estante de cinco metros de altura, cheia de caixas.


E assalta-me:

1. As caixas lá de cima estão vazias?
2. As caixas lá de cima estão cheias de café podre?
3. Quem é que pôs as caixas lá em cima?
4. As caixas lá de cima, um dia, vão descer?
5. Quem é que vai buscar as caixas lá de cima?
6. As caixas lá de cima são a fingir (só fachada)?
7. As caixas lá de cima são caixões e têm pessoas mortas lá dentro?
8. Para onde é que vão os corpos dos chineses, quando eles morrem?

Depois tomo um café naquele balcão meio paneleirote, em calhando, calha a horas que já não devia, e não durmo, assolada de dúvidas e cafeína mesmo por baixo do cabelo.


4 anos de Mel Maria, coitadinha


Uma das minhas gatas, Mel Maria, faz hoje quatro anos.

Eu nunca quis ter animais, o que não é o mesmo que dizer que nunca quis animais em casa. Não é a mesma coisa uma pessoa temer a morte aos bichos e temer o fim aos móveis e cortinados. Eu sou da categoria (altíssima) dos primeiros. Isto, falando de mamíferos quadrúpedes, que são aqueles que interagem mais intensamente connosco e com a mobília. Porque, quanto a passarinhos e a peixinhos (e bichos da seda, nem me quero lembrar desses grandes cabrões), sempre tive, sobretudo desde que eu própria procriei. Quanto a cães e gatos, acobardava-me pensar no dia em que um me adoecesse ou me morresse. Já me morreram três passarinhos desde que tenho gaiola, e não foi bonito, nenhuma das vezes. Na minha casa correram rios de lágrimas, que fizeram vales, nos quais eu, mulher adulta - é sempre bom frisar -, participei em larga, porém assustadora, percentagem.

Também tive um aquário com dezenas de peixinhos pequeninos, mais quatro. Eram três ou quatro pares de guppies e quatro neons, e a mim ninguém me avisou que os guppies fornicam de manhã à noite e acho que de noite também (não fui lá ver), ao que parece, sempre sem se alimentarem. Consequentemente, as fêmeas estão constantemente de esperanças. É que julgo que o raio dos peixes só servem mesmo para se reproduzirem, aquilo lá na vida selvagem deles devem ser pasto para as vacas do mar, única explicação que encontro para tal intensidade copulativa. Depois defecam umas coisinhas pretas, muito miudinhas, que uma pessoa pensa que são cocó e eles acham que é comida. Nessa altura, é vê-los refastelarem-se com o pitéu resultante da sua própria defecação, mas aquilo, de duas, uma: ou são daqueles vegetarianos da transição, que ainda comem peixe, ou são, simplesmente, coprofágicos. No entanto, se ficarmos atentos, que foi o que eu fiz, e não deixarmos que os adultos engulam aquilo tudo, verificamos que as coisinhas pretas se desenrolam e têm cara de peixe, ou seja, são crias. Tive uma fêmea que evacuou seis bolinhas, mais tarde, doze e, ao terceiro parto, vinte e quatro - era sempre a multiplicar por dois, a bruta -, pelo que faleceu. Não foi fácil para mim, que, na época, me encontrava, também eu, cheia que nem uma guppie, e cheguei ao cúmulo absurdo de telefonar para uma loja de animais, em prantos, a explicar que o pós-parto da minha peixinha estava a correr extremamente mal, e que ela parecia estar a querer finar-se, o que veio, conforme já disse, efectivamente, a acontecer. Entretanto, andavam os quatro neons, de um lado para o outro, independentes e indiferentes a tanta fornicação e paridança dos guppies, tal e qual como se vivessem num mundo à parte, ou noutro aquário, que é o que muita gente, em parecendo que não, faz. Andavam sempre os quatro, todos juntos. Nunca percebi se eram quatro machos, quatro fêmeas, dois de cada, um de cada - haha, poing - ou o quê. Comiam, a quatro, abrandavam o ritmo, já de si, lento (para dormir?) a quatro, nadavam - os peixes nadam? - a quatro, um dia um lembrou-se de morrer, morreram os quatro.

Pronto, isto tudo para dizer que a minha Mel faz hoje quatro anos, não sei se já disse. Recebi-a nos braços às cinco semanas de vida (eu tinha menos quatro anos do que tenho hoje, o retrato está desactualizado) e, desde aí, que esta gata só me dá alegrias. 


Nunca vi animal mais manso, mais meigo, mais adorável. Nunca arranhou, propositadamente, nem mordeu ninguém, permite todos os abusos carinhosos de que é vítima - é molestada com beijos e festas e colo demasiadas vezes por dia, coitadinha - e fala: faz-se entender perfeitamente quando quer um dos seus três efes - ir lá fora, fiambre ou frango. E dá beijos, bastando, para tanto, pedir-lhos - "Mel, dá-me beijinhos". Ainda vou filmar isso, que eu cá por mentirosa é que não passo.

Coitadinha é quase o apelido dela, posto por mim. Faça o que fizer, é coitadinha. Outro dia, arranhou o rapaz, quando se libertou do colo dele. Ele queixou-se, 
- Olha, a Mel arranhou-me! 
- Coitadinha!

28/04/2015

Quando tudo te grita 'Não saias de casa!'

e tu, teimosa, até sais.
E entendes que deves deixar a tua pegada ecológica, e vais a pé.
É só até ao café, embora, nos dias que correm, ir ao café seja, no mínimo, a actividade lúdica mais perigosa que se pode praticar.
O café fica a escassos (adoro adjectivar com escassos quando vou falar de metros logo a seguir) cem metros de casa. E lá vais tu.

Logo que pisas a rua, apercebes-te de que a equação vestido não justo (ou seja, vestido injusto) mais meias altas mais vento tem, pelo menos, uma variável a mais. O vestido injusto faz a vontade ao vento, ou aos mirones involuntários - há uma cena, na Branca de Neve, assim, não há? Só olhos (assim era eu) -, criando-te uma situação profundamente injusta, só obedecendo ela a critérios mínimos de justiça aos olhos multiplicados que te acompanham pela rua.


Trauteias mentalmente uma coisa do final da tua infância, Lá no centro, larentro, da avenida, larida, o Pinóquio, laróquio, escorregou, larou, agarrou-se, larou-se, ao meu vestido, larido, nem uma prega, larega, me deixou, larou.

Vais nesta alegria esfusiante quando ainda és acometida por um ataque de tosse. Vês aproximar a vizinha do primeiro andar e, naqueles escassos - lá está - dez metros que te distam dela, ainda tens tempo para ter mais dois ataques de tosse - ou seja, se estiverdes atentos à matemática aqui implícita, um total de três acometimentos. E não é que, no momento em que se cruzam uma com a outra, ela te pergunta, não estupidamente, mas estupidificantemente: Está boa? 
Vá que respondes - Bem, muito obrigada, no exacto segundo em que te assalta o quarto ataque.

Já no café, apontas para um bolo que te parece um babá.
E ninguém te avisou que, se já tens uma homérica e histriónica dificuldade em fixar nomes de pessoas, ainda que se chamem Maria ou José, na matéria dos nomes dos bolos chumbaste em grande estilo e foste proibida de tentar a segunda época, por indecente e má figura na primeira e segunda chamadas.
- Isto é um babá?
Calavas-te aqui. Esperavas que o empregado respondesse mais do que aquele tímido Não. Ele, a seguir, ia dizer-te a verdade - que aquilo ali era um bom bocado
Mas tu não te cansas de fazer figuras. Além disso, Arroios também tinha uma maluquinha, e tu não moras em Arroios.
- Então é o quê, um bobó?
Vá, não perguntem por que é que soltei aquilo. Ainda me apetece vomitar, de cada vez que me lembro da cara do desgraçado. Nem quero saber onde é que ele vai passar esta noite. Eu não pago chiliques em hospitais.

Piora-me a situação o facto de ainda estar surda de um ouvido. Falo muito alto. Não é que eu dê por isso, mas as minhas companhias queixam-se.
Na verdade, gritei - UM BOBÓ. 
Mas pronto. A história podia acabar aqui. The end, já chega. 
Isso só é possível com uma pessoa, digamos, comum, que tem o azar de cometer uma gaffe. Já comigo, é sempre a descer. 
Diz-me a minha companhia assim:
- Levo-te a casa, tenho aqui o carro - eu lembro que estava a escassos cem metros de casa.
- Ai, que bom, adoro andar de cu tremido!
Parece que ainda estou a ver o outro do bom bocado, cá fora, a fumar um apreensivíssimo cigarro, e a ver-me afastar em direcção à tremedura do cu. E quis eu, agarrando as pregas-laregas do meu vestido-larido, que a equação vestido injusto mais meias altas mais vento não me criasse ali mesmo uma situação historicamente injusta, porque, por Murphy, até as cuecas hoje eu tinha mostrado a um desconhecido que, ainda por cima, não me tinha oferecido flores.

(E não, hoje não eram amarelas)

Photoshop de amor

Estava parada num semáforo, à espera que abrisse o verde, para poder avançar, e ir-me embora dali, como se nunca tivesse estado. Vou-me embora com tal frequência que nem sei como é que ainda cá estou. Não fiz mal a ninguém, mas sinto a culpa do mundo vezes a mais, desproporcional à capacidade - incapaz - de carga que tenho. 
Dois rapazes ali ao lado, no passeio, a conversar, despediram-se com um toque de mãos, um foi para lá, a abanar muito as ancas, homossexuais, o outro veio para cá, a abanar muito as ancas, paralisia cerebral.
A mãe dele não há-de ser muito diferente de outras tantas que já conheci: olhar vago, sonho soterrado. Dois filhos num só - um sonhado, outro real -, que não coincidem, nem irmãos se parecem, apenas se interseccionam numa ínfima parte, vagamente espelhada naquele que é recebido nos braços. Uma pessoa sonha com um bebé e sai-lhe outro.
Quando se espera por um filho, traz-se um filho na cabeça. É o bebé imaginado. São nove meses à espera de uma pessoa, com ela dentro do corpo, a pele a rebentar de amor, o coração a descompassar de expectativa. É um tempo que custa muito a passar - não sei como é que uma pessoa aguenta -, nove meses é quase um ano. Chega a atravessar as quatro estações. 
A sobreposição, com intersecção absoluta, das imagens do bebé real e do bebé imaginado, costuma acontecer no momento do nascimento. Isso convence-nos da nossa própria premonição. Por isso é que dizemos assim: "Ele é mesmo como eu o imaginei". Não é nada. A natureza defende-se e põe as mães a fazer photoshop de amor. Recortam o novo bebé e colam em cima da imagem do velho bebé, que trazem na cabeça há nove meses.

Lembro-me em particular da Rita. Não via, não ouvia, não falava, não andava. Praticamente só dormia. Aos dez anos, tinha o cabelo macio como o de um bebé de meses. 
Sempre tive uma incapacidade absoluta para entender a incapacidade absoluta. Tem que haver um ponto de luz no meio de tanta escuridão. 
- Rita, o teu cabelo é o mais bonito e o mais macio da sala toda.
Recordo-a a levantar a cabeça e a girá-la, na minha direcção, olhos perdidos na cegueira. Não creio que me ouvisse - era o que me dizia a educadora -, mas certamente sentia a minha mão no cabelo dela. Quando virava a cabeça para mim, oferecia-me a ilusão, de que lhe ficava tão grata, de me ouvir e entender - ao menos, ela.
Lembro-me também da mãe do Manel, que lhe nasceu vinte e sete dias antes de me nascer o meu. Disse-me ela que as mães das crianças com problemas - disse ela mesmo assim - não têm culpa. Espectro autista para o dela, inteligência normal para o meu. Naquela época, ambos com quatro anos, o meu pela mão, mãe-mãe-mãe, o dela no colo, a mexer no ar, lá nas sombras dele.

Tinha-Lhe pedido, quando esperava o meu, naqueles negócios que sempre fiz com Ele, que me desse uma criança assim, se achasse que era para mim, mas que, em troca, nunca me levasse uma das minhas. Sempre preferi a possibilidade de ter que enfrentar a minha própria incapacidade para fazer photoshop de amor, à irremediável e avassaladora sutracção da imagem desse amor.

27/04/2015

Tenham piedade de nós


– O que o homem sofreu a vida inteira
disse ela. E de facto sofreu como um cão a vida inteira. Respondi
– Conheces algum artista que não sofra, conheces algum artista feliz? 
Todos eles atormentados, contraditórios, num desespero e numa angústia constantes, mesmo sob o humor, sob a alegria. Os meus queridos russos, Tolstoi, Gogol, Tchecov. Scott Fitzgerald, que sustentava não ser possível escrever a biografia de um escritor porque ele é muitos. É necessário roermos as passas do Algarve para que o leitor tenha prazer. E que mistura de sangue e júbilo na criação, outros sentimentos de que não falo por pudor. Graham Greene agora, para variar: «um escritor é um homem de barba por fazer e copo na mão, cercado de criaturas que não existem». E Gogol destruindo toda a segunda parte das Almas Mortas, uma obra-prima, chorando. Já que estou em maré de citações lembro-me de Apollinaire, poeta com quem aprendi muito: «piedade para nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro». Era isso que ele suplicava: piedade para nós, tende piedade de nós. A beleza que nos dão saiu-lhes do pêlo, rasgaram a alma por ela. E a Dominique a olhar para mim com a tal piedade que Apollinaire desejava. Como é possível coexistirem num só homem ou numa só mulher tanto sofrimento e tanta exaltação? 

António Lobo Antunes, in Tenham piedade de nós

A pouco e pouco, a vida volta ao normal e a gosma fenece

Até já fui ao ginásio. 
Ainda tenho o olfacto a meio-gás. Mas, por favor, nem me falem em gás.
É que, pese embora, fui agraciada com gás metano - uma coisa perfeitamente cósmica -, provindo do rabo maior que se encontrava naquela sala (ou talvez no mundo inteiro). Estive eu à espera, pacientemente, que ela acabasse o exercício - aquilo há-de ter um nome, tipo push and pull down, ou outra porra do género -, para fazer o meu, vai ela, desalicerça-se dali, e bumba.
Ninguém me dá o meu devido valor. Se eu persisto na insistência, devo-o à minha determinação e tenacidade para manter os meus mínimos olímpicos de beleza e tonificação.

Desculpem-me estar a começar assim uma semana, à queima-roupa, mas eu preciso de desabafar, e que melhor local do que este meu, para o fazer?
(Só me lê quem quer. Estais incomodadas? Turn around, pá)
Um confessionário? E há lá padres com guts - estômago, se quiserem - para mim e meus desabafamentos? Um ombro amigo? Qual ombro? Alguém atura uma senhora de idade, gira que dói, a babar-se-lhe e a ranhar-se-lhe nos enchumaços, que não seja a troco de (sei lá) tempo e intensidade nos dislates e desconchavos? E eu agora não tenho tempo, e falha-me a paciência para os desânimos dos outros, caguei que me chamem egoísta, olhem, eu não sou a mãe do mundo e a vida já me deu o que me chegue para me entreter. A caixa dos gritos? Ainda não arranjei uma de jeito, só me oferecem caixas de bombons em forma de coração. O espelho? O mesmo que me diz, todos os dias, És tu, minha rainha, que nem me deixa falar, mal abro a boca para lhe revelar Hoje preciso de conversar, tu escuta-me, animal, ele começa logo com aquele relambório Tão gira, como é que é possível, com essa idade, e ao fim de tantos filhos? Calar-me e remoer, prejudicando, assim, este doce, porém frágil, coração? Era o que faltava, ainda me dá uma travadinha, à conta de não poder desafogar na minha santa paz, que eu conto é comigo, não com Senhor nenhum. Eu, não. Já sabem que só continua aqui quem aguentar. Também não me vou alongar mais. Digo eu, agora que vou lançada.

Nos últimos dias, senti-me povina: sabem quando o povo diz "Já fui a uma data de médicos e nenhum acerta com o que eu tenho, quando eu sei que o meu mal está todo na cabeça"? Assim era eu, com toda a porcaria que transportava em redor do cerebelo. O povo diz muito estas duas coisas, para justificar que não trabalha. Infelizmente, a mim, em havendo o que fazer, ninguém me dá essa abébia.

Hoje afirmo, de peito aberto, que atiro, finalmente, com a gosma para trás das costas. Porém, não o faço literalmente, pois não aguentaria nelas o peso das litradas que produzi e expeli nos últimos treze dias, a escorrerem em direcção nem quero pensar do quê. Semelhante quantidade, já daria para encher um jerrican. 

Até já teria a quem oferecê-lo.
Mas a vida não é justa, pois não?

26/04/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 6

Olha lá, mas por que raios é que o leite de côco é tão caro? Custa muito a ordenhar, queres ver?


(Foi uma piada, tá?)
(Eu achei graça. Ha-ha-ha)

Coisas que nos marcam

Existem marcas que entram na nossa vida, e, por consequência, na nossa linguagem comum, pelo que passamos a utilizá-las como designação genérica. O exemplo mais académico é o da água-de-colónia, fragrância suave, inventada em Colónia, na Alemanha, no século XVIII, que constituiu grande novidade relativamente aos perfumes muito fortes utilizados na época.

No nosso dia-a-dia, também há vários exemplos, como seja o das giletes (Gilette), das aspirinas (Aspirina - Bayer), das chicletes (Chiclets - Adams), dos taparueres (Tupperware), do nylon (Nylon - DuPont) e da licra (Lycra - Invista), ou das cotonetes (Cotonete - Johnson's & Johnson's). Ou seja, marcas que, pela frequência com que são utilizadas na nossa vida de todos os dias, ou pelo facto de terem sido pioneiras e únicas durante muitos anos, passaram a designação genérica, isto é, a designar todo e qualquer produto que se lhes assemelhe, ainda que seja de outra marca.

É também o que acontece com a Coca-Cola e a Pepsi. Quando pedimos uma coca-cola, normalmente, é-nos indiferente se vem Coca-Cola ou Pepsi. Até porque a regra é perguntarem-nos: "Pode ser Pepsi?". A frase Pode ser?, relacionando a Pepsi com a Coca-Cola, é tão universal que já deu frutos aos criativos de publicidade para a Pepsi:


Os outros, não sei, mas eu digo coca-cola quando peço uma coca-cola (lá está), porque, se dissesse apenas aquilo que quero - uma cola -, provavelmente iria ouvir a piada que dispenso - "Cola é na papelaria, nós aqui temos Pepsi" -, e que está, basicamente, ao nível daquela outra, também muito gira, "Copo d' água ou copo com água?", e eu, vá, sou uma histérica peluda com a minha língua e também tenho alguma dificuldade em entender algum género de humor.

Ora bem - o rímel. O rímel mais não é do que uma marca que se tornou designação genérica de toda a tinta destinada a pôr nas pestanas com a duração de um dia, criada pelo senhor Rimmel, dono e senhor da House of Rimmel. É só por isso que as pessoas antigas, assim como eu, chamam rímel ao rímel, e não máscara de pestanas. A palavra existe em português do bom, e serve para ser usada. Designa um tipo de cosmético, genericamente, não propagandeia a marca Rimmel, que continua a existir. Tal como não estou a publicitar a Coca-Cola de cada vez que peço uma coca-cola, também não estou a divulgar a Rimmel de cada vez que escrevo aqui a palavra rímel ou que vou à perfumaria comprar o meu (que não é da Rimmel, já agora).


As marcas também desencadeiam fenómenos regionais na linguagem comum. Os brasileiros, por exemplo, chamam xerox às fotocópias, e band-aids aos pensos rápidos. E, no Porto, o cimbalino, vem de onde?


Canudo.

25/04/2015

Pai, hoje vesti umas calças encarnadas

Pareço aquelas tontinhas da internet, que vão para as redes escrever às pessoas que já morreram.
RIP, dizem elas. Até sempre, dizem elas. Até já, dizem as tontas mais tontas. Ou amo-te. Como se os mortos as lessem.
Eu não, pai. Faço agora o que faço em tantas horas da minha vida, em todos os meus baques, leva-me o primeiro impulso a pensar: Esta, tenho que contar ao pai. Não me lembro que isso já não pode ser, porque pode: conto na mesma.
Como quando olho para a ponte nova.
Passou-se tanta coisa entretanto - ai, teria tanto para lhe contar: a internet, o 11 de Setembro, a Amália, o tsunami, os títulos do Dragão, nem saberia por onde começar -, mas aquela ponte é o monumento das minhas saudades. Diz-me ela que veria - e não vejo - os seus olhos cintilar durante a construção, e depois, de cada vez que pousassem nela, acabada. Sempre que um homem sonha, o mundo avança. Não é vermelha, não soa a Salazar nem a 25 de Abril, mas diz-me - o teu pai não volta.
Aquela ponte é gigantesca.
Esmaga-me de saudades.

Eles não sabem nem sonham.
A PIDE era o gato no jogo do gato e do rato - um constante sobressalto, livros proibidos, textos censurados, e a Guidinha, pai, a Guidinha, que o fazia rir e a mim, só de o ouvir rir. O lápis azul não pousava na Guidinha do Sttau Monteiro, que, desabridamente, escrevia crónicas anti-governo.
Era um amigo de madrugada lá em casa, escondido dois anos atrás dos cortinados de cada vez que tocava a campainha - tão giro, o Pedro, pintava os cabelos de encarnado para não ser reconhecido, e dançava sevilhanas para nos fazer rir. E saía pela noite, gato pardo e clandestino, trocando os papeis ao jogo.
Era o chiu, cala-te, rapariga!, quando eu me punha em cima do banco da cozinha, a cantar o hino nacional - na cozinha ouvia-se tudo, prédio acima, abaixo, afora, adentro - não podes cantar isso, cala-te. Começava então a versão alternativa, nozes podres, maçã reineta do meu quintal - Cala-te, rapariga.
Eram as reuniões no café, proibidas, mais que três à mesa é reunião, reunião é conspiração, conspiração é prisão, os empregados podiam ser chibos, havia bufos em todo o lado - em todo -, as paredes tinham ouvidos, e também boca e olhos, só não tinham nariz -, excepção às do Monte Carlo, às do Vá-Vá, e poucas mais, de resto, as paredes tinham uma cara inteira, feia e delatora.
Eram cortes na emissão, no rádio, na televisão, cortes a golpe na amizade e na família, a PIDE levou-o, e, às vezes, o regresso, de outro homem, outra mulher, tantos Luís de Sousa - Quem és tu? Ninguém -, livros e jornais pela sanita adentro, as sanitas de Portugal tragaram, engasgadas, um enorme espólio, feitas fogueiras da Inquisição. 
E eu não tinha nenhum vestido encarnado.

Sempre que um homem sonha, o mundo avança
O pai sonhou, mas só acordou um mês depois de realizado o sonho. Não viu os cravos e a festa, a PIDE na ratoeira, os chaimites na rua, a nossa rua com nome novo. Nomes novos, revolução, democracia, partidos, voto, opinião. Liberdade.
Henrique, houve uma revolução, somos livres, acabou o pesadelo.
O sonho de liberdade, todo em todos os tons de vermelho, fez-se de todas as cores - e agora está, como sempre acontece às paletas de mistura, quase negro. 
Eles não sabem nem sonham
o que é viver sem poder cantar, nem falar, nem escrever, nem pensar.
Têm internet, têm jornais online, têm foruns de discussão, têm redes sociais, têm blogues. Cada um escreve o que lhe vem à cabeça, ou o que nem isso. Pode-se escrever sem pensar, pai. É esta a liberdade suprema: escrever, emitir uma opinião, mesmo que destituída de raciocínio, e até impô-la, porque somos livres. Acabou a censura, que bom. Acabou o prelo, a edição de textos, o filtro.  
Eles não sabem nem sonham
a quantos e a que penas custou alcançar esta ferramenta de liberdade que hoje usam como se fosse um punhal.


Eles não sabem nem sonham 
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que um homem sonha
O mundo pula e avança

24/04/2015

Desde ontem que não me drogo, mas zzzzzzzzzz



Dormi à tarde, até às 6, estou outra vez podre e só me apetece uma melody muito 80's para ir nanar em paz, embalada - numa embalagem perfeita.
Baby sneezes, Mommy pleases, Daddy breezes in...
Actifed rules.

Eu tenho problemas com médicos # 15

Farta de entupimentos nos meus canais, farta de palpites ao lado, farta de encharcar-me com antibiótico e anti-histamínico - que me põe com uma cadela mesmo digna do cão -, em suma, farta desta fartazana, fui a um especialista das fossas, otorrinolaringologista, pese embora estivesse consciente de precisar apenas do oto.
Andei por estes dias a sujeitar-me às maiores violências e às práticas mais absurdas com vista à salvação do meu corpo, já que a alma se encontra perdida, por mais antagónica que esta expressão seja. Desde espichar água do mar fossas acima, engasgando-me de seguida, fazendo saltar lágrimas de Portugal dos meus encantadores, pestanudos e negros... onde é que eu ia?, ah, olhos, até - imagine-se - besuntar os pés, à noite, com uma berdroega a cheirar a eucalipto - segundo o que me dizem, já que eu continuo com o olfacto perdido, juntamente com a alma -, e, de meias calçadas, dormir assim, para evitar tossir, acordando de manhã com os pezinhos-em-nhanha, qual coentrada, tudo tenho feito para acabar com a raça desta praga, à excepção de mandingas, simpatias e bruxedos.

Estou nas lonas. Fui ao tapete. KO. No fundo. E, no fundo, isso explica que tenha ido ao médico.

O homem era gigante e viu-me os seios e as trompas - nasais e de Eustáquio, respectivamente.
Modéstia à parte, o meu nariz é despropositadamente maravilhoso.
Estou habituada a isto, porque o ofta também fica doido com os meus olhos. Cada especialidade, seu bocado - pecado - meu. 
Contei-lhe a história da minha vida de há oito dias para cá, na voz mais penitente e desgraçada que consegui. Não ia ali pagar para ouvir mais um a falar-me de adultério. Ando cansada de fazer psicanálise aos meus médicos. Uma vez, até um padre me saiu na rifa. Estava internada num hospital religioso, o padre foi conversar comigo no dia da alta - para me confessar, ou para me converter -, e acabou a desabafar comigo, lá coisas da vida dele. 
O otomédico mandou-me sentar numa cadeirinha daquelas que parecem dos barbeiros e, nessa altura, espreitou-me e espetou-me os buracos todos - os da cabeça, um por um.
Ah, não, os olhos não espreitou, nem espetou com nada.
Foi também neste momento que ele bloqueou de amor pelas minhas orelhas. Modéstia à parte, as minhas orelhas são despropositadamente maravilhosas.
Meteu-me não sei quantos zingarelhos em toda a parte otorrinalaringa, e esteve a segundos de confessar que nunca vira uma garganta tão perfeita quanto a minha. Disse que via pontinhos brancos. Pudera. Até um céu estrelado ele cá viu. Modéstia à parte, a minha garganta é despropositadamente maravilhosa. 
Espátula de metal até à náusea, tubo fininho nariz adentro até à garganta, vários coisos pelas orelhas, para ver melhor. E um martelinho na testa, De onde é que vem o som?, Da direita - outra martelada - De onde é que vem o som?, Da direita - mais outra - De onde é que vem o som? [porra, vou-lhe dizer da esquerda, queres ver que o gajo está feito com a PIDE, já começou as comemorações e não se cansa deste arraial?], Da direita [que eu tenho tomates]. 
O som vem da direita porque é o ouvido direito que está mais cheio de líquido. Deve ser aquela cena de a água ser boa condutora do som (uma chatice, nas piscinas, não se pode dar um arrotinho, a pessoa parece o Monstro de Loch Ness).
Deu-me um copo com água, mandou-me meter um gole na boca, chegou-me uma bomba (parecia mesmo uma granada) ao nariz, e mandou-me engolir (a água, não a granada). Nesse momento, deu-me uma bombada buraco acima, com uma força tal, que me pôs a exclamar: Socorro, que me afogo! Por momentos, sonhei que ele me atirava uma bóia vermelha à cabeça. Os meus ouvidos deram um estalo, o que me fez acordar do sonho.

Haha - tenho as ites todas que se podem ter na cabeça: rinite, sinusite, amigdalite e otite. 
Isto sim, é que é ter um pacote em grande e em bom.

Origem da gosmeira?
O que é que eu disse, no princípio desta saga?
Plátanos. E essas merdinhas que andam no ar, armadas em florzinhas românticas.
Fosse isto nos Estados Unidos e eu ficava rica, só com a indemnização que exigia à Câmara de Lisboa. Este mês já não como: deixei-o todo na farmácia. 
Vou ficar despropositadamente maravilhosa de tão magra.

23/04/2015

A queda dum livro alado

Nem de propósito, chegou hoje o livro que encomendei a semana passada. O alfarrabista já não tinha aquela versão que mandei vir (um erro do sistema permitiu que fizesse a encomenda online de um livro indisponível), e mandou-me outra, mais bonita, de capa dura, sem custos acrescidos. Fixem este nome: Luís Igreja * - alfarrabista.com



Dia Mundial do Livro, recebo um livro em casa, A queda dum anjo, no mesmo dia em que falo em anjos e cujo expedidor se chama Luís Igreja.

Cristo.

* ele pediu-me para divulgar o site, mas não me paga para isto. Devia exigir, não acham?

Medo

Tenho medo de te perder.
É o único medo que, verdadeiramente, tenho, propriedade minha, posse que toma posse de mim, e que eu possuo de forma possessiva. 
Nem animais, nem acidentes, nem doenças, nem mesmo da morte, não tenho medo de nada. Até de andar de avião, deixo de ter medo no momento em que me imagino a ter que te ir buscar a algum lado do planeta - pode ser a América - e ser esse ser o único meio que me possa levar até ti.
Tive tanto medo quando estiveste doente. Nunca me lembro de ter tido tanto medo na minha vida. Nem quando ficava às escuras, com a cama cheia de bonecas, e não conseguia perceber onde é que ficava a porta e de que lado estava a parede. Nem quando o telefone tocava, durante o coma do meu pai, nós sem sabermos se era a notícia, que medo, que medo, é mesmo verdade que o coração fica espremido, eu sei, porque eu já tive o meu assim. Nem quando ouvi do médico a frase nódulo às nove horas. Os médicos dizem cada coisa, as nossas mamas são um relógio, tic-tac. Nódulo às nove horas, vamos esperar para ver. Vamos esperar para ver, tu e eu, de mão dada, juntos na agonia da espera, ou eu sozinha? Não tive medo. 
Não tenho medo de morrer - porém, não posso morrer. Semeei muitas raízes que me agarram à Terra, não posso ter a leviandade de me arrancar sem mais nem porquê. Dialoguei com Ele outra vez: Vê lá bem o que é que me arranjas, não te esqueças que estou a cumprir uma obrigação que é tua. Deus não tinha anjos suficientes, e então criou as mães (não sei quem disse isto, mas deve ser verdade). Não sabia a que me agarrar no meio do meu não medo, agarrei-me às minhas asas. 
Mas tive medo quando o médico disse 
O exame que ela fez não foi inocente
As tuas inocentes costas tinham feito um exame. O exame não inocente. Antónimo de inocente, culpado. Perigoso. Mau. O resultado do exame às tuas costas inocentes foi: culpado. Tu sem culpas, tu desculpada, o teu exame culpado. E eu apoderada de medo.  
Ela tem aqui uma massa
disse outro médico, no mesmo dia, a quem levei o teu culpado exame, tolhida de tanto medo, incapaz de fazer outra coisa que não fosse correr portas, bater a todas, até que alguém, atrás de uma delas, me pudesse responder 
Dá cá a cruz
Diz que Deus não nos dá uma cruz mais pesada do que a que nós podemos carregar.
A palavra tumor a sair da boca de um médico, um senhor a dizer um palavrão daqueles.
Tumor. Temor. Terror.
Meti-te debaixo das minhas asas de anjo, parecias um pintainho.
Seis horas nas mãos de um santo milagreiro, de bata vestida e bisturi em punho.
Vi-o ao fundo de um corredor, santo com sorriso de anjo, também ele todo cheio de asas, e, dos lábios, brotou-lhe a palavra
Benigno.
Benedicto, bem aventurado - bendito, que vens em nome do Senhor -, senhor que não diz um palavrão daqueles.
Deixei de ter medo, mesmo quando me dizes que, um dia, vais p'ra América, de avião, e não voltas. Se tiver que te ir buscar, também me meto nessas asas e trago-te debaixo das minhas, pintainho.
Mas continuo a ter medo de te perder. 
Ao menos, que fosses só uma - teria medo de te perder a ti. 
Continuo a ter medo que haja outro médico de cuja boca saia o palavrão terror
Ao menos, que fosses só uma.
Tenho medo de vos perder.


Pensamento escatológico do dia # 11

O ranho é como o amor: nunca acaba.


Together in electric dreams (Love never ends) 

Mas também já pode ser o anti-histamínico a afectar parte de mim.

22/04/2015

Da falta de assunto

Uma pessoa tem um blog e é acometida de falta de assunto. Isto, acho que é do domínio comum. Só quem nunca escreveu em blogues, com uma frequência mais ou menos diária, é que não sentiu o que é não ter nada para dizer ou, tendo, não ser nada que interesse às pedrinhas da calçada, quanto mais ao mundo.
Aliás, por este post, percebe-se que a falta de assunto pode ser, em si mesma, um assunto. 
Claro que a solução é óbvia: não tens do que falar, não fales. Falta de assunto para o blog? Não escrevas. Criar um não-assunto ou um tema de merda, pode ser o tiro no pé de um blogger. Ou na cabeça, dependendo da pontaria de cada um. E, quando se dispara da cintura - expressão muito utilizada por um grande sábio que eu conheço, ai, que agora até gatuna de expressões me tornei -, o canhão tanto pode estar virado para baixo como para cima.

Alimentar um blog de culinária, mudar as fraldas a um babyblog, levar a passear um petblog, captar boas cenas para um fotoblog, maquilhar um blog de cosmética, projectar erotismos num erosblog (estou farta de inventar palavras, hoje), todos os dias, não pode ser fácil. Deve ser por isso que existem tantos blogues generalistas, como este meu buraco: não se dedicam a nada, na verdade. No entanto, eu também tenho crises de originalidade e ataques de escuridão mental, intelectual, espiritual, e assim. Neste momento, acho que estou a passar por uma, e muito aguda. Caso contrário, não estaria aqui a escrever sobre falta do que falar (estaria a dar banho ao cão, se calhar. Não, espera: não tenho cão).

É isso: falta do que falar. Há pessoas com as quais é uma tormenta cruzarmo-nos: nunca temos assunto para elas, ou, pior que tudo, a meio de uma conversa, somos acometidos de uma branca que nos enche o cérebro de lixívia e o lava limpinho. A partir de um momento, não nos sai nada, isso contagia o ambiente, a outra pessoa apercebe-se e bloqueia também. É uma espécie de ponto da tesoura, onde foi cortado um fio, cujas duas pontas se soltaram, uma para cada lado, sem hipóteses de se reatarem.

Há ainda assuntos que nem são bem assuntos, são temas do dia - e que, como tal, se esgotam em poucas horas. Esses, normalmente, fazem parte das notícias - uma morte, um acidente espectacular, um pai homicida. Porque são quase "obrigatórios", quem não falar neles, não é cá da malta. Muitas vezes me tem acontecido ir a pegar num tema e perder completamente a tesão, por ele já ter sido tão esventrado até às 11 da manhã, que já não me apetece meter numa discussão onde tudo se disse e tantas opiniões foram dadas. Dou-me conta de que serei incapaz de fazer melhor, de dizer alguma coisa mais bem alinhada do que aquelas que leio, e calo-me. Prefiro falar das ondas do meu cabelo a meter-me em ondulações altas e embaraçadas, que se tornem embaraçosas.

A meu ver - e, vá, este lugar é onde eu me explano, me espraio, me espalho, portanto, dou aqui a minha opinião, que não vale o que vale, não senhora, vale tudo, porque é minha e eu, parecendo que não, às vezes escuto-me com alguma atenção. Tenho tanto de sábia como de louca, e essa mistura não só me enternece como me impõe um grande respeitinho, que é muito bonito -, dizia eu, a meu ver, os blogues mais difíceis de manter são os blogues de poesia original e ou textos literários originais. Mesmo que, uma vez por outra, recorram a copy, o trabalho de pesquisa a que obrigam, a inspiração que exigem, a originalidade que impõem, submetem, com toda a certeza, os seus autores a um esforço tal que, não é porque o resultado final não o demonstra, que não vale a pena o mergulho nas profundezas. 

No limite, a postura que se deveria adoptar, em tudo na vida - conversas ao vivo ou por outro meio qualquer, e também - e sobretudo - nos blogues, deveria ser esta:


Ainda no limite, mas mais divino: então e o Criador, tem ou não tem crises de falta de originalidade? Ataques de preguiça de criação? Momentos em que, não encontrando alternativas, se plageia a si mesmo, qual MRP?

Herman José e Guida Maria
Luís Represas e Margarida Pinto Correia (estes até estiveram casados, credo)
A Mona e Isabelicha Herédia

Até grande LP e Nancy Botwin, até mesmo essas duas figuraças, levantam-nos a séria suspeita de que a falta de inspiração pode afectar os melhores. E, quem diz Nancy, diz Sofia Vergara, ou qualquer dessas. Mas aí é diferente: o Criador ficou tão contente com o resultado, por uma vez, que repetiu a receita, já não por falta de ideias...

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 5

Vejo poesia em tudo.


Diário da minha gosma - Ep. # 231 - série 7

Tomei anti-histamínico. 

Assola-me todos os orifícios da cabeça um surto alérgico. Agora posso afirmá-lo com a máxima segurança, pondo de lado as hipóteses gripe, otite e piolhos. O médico disse que não dava muita sonolência (a sério que deviam assistir à quantidade de vezes que eu tentei escrever a palavra sonolência - foi sonlo, solno^, sonol^e, sonloê. Porra, até que acertei), e eu tomei. 

Não se pode dizer que já tenha feito figuras tristes, o que pode ocorrer pelo simples facto de ainda não ter tido tempo nem oportunidade. Para já, não ziguezagueei nem entaramelei. Estou só um niquinho ao ralenti e noto que suspiro frequentemente. Pareço mesmo uma dama do século xviii, mas de saias mais curtas. Penso que o maxilar inferior já se deslocou irreversivelmente do superior há algumas horas. Em contrapartida, também me sinto um nico melhor, designadamente porque há partes de mim que não sinto. Continuo surda, bilateralmente falando. 

Ahummmmm.

21/04/2015

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 4


Eu tenho problemas com médicos # 14

Farta dos meus ouvidos tapados, a ponto de me tornar o novo Van Gogh, mas em bi, lá fui ao Hospital da Luz, apesar de me saber ali persona non grata, desde a aventura sangrenta com a minha suposta infecção urinária. Como ia mascarada de drama e tragédia (negro total e um lenço a fingir que é de seda, em tigresse), pouco ou nenhum risco corria de ser reconhecida como a tonta da órina. 
Ao balcão, recebe-me a funcionária de verde, recolhe os meus dados, avisa-me que estão com duas horas de tempo de espera para os casos menos urgentes, pondero simular um desmaio, uma convulsão, um ataque de Tourette, um síndrome sarnoso, até que gemo o que sempre gemo: Eu vou ser considerada urgente, estou malíssimo. A imperturbável contra-ataca que São 98 euros e esse foi o momento em que eu não desmaiei, não tive uma convulsão, etecetera, mas portei-me como uma senhora: recolhi os cartões e anunciei Antes surda toda a vida do que pobre por um dia. E vai de rodar os calcanhares high heels, que a minha vida não é só fintar a gatunagem.
Cheguei ao carro, sentei-me, chorei desalmadamente e limpei-me.
Aquele parque também tem uma história dramática, que, de cada vez que lá deixo o carro, me apetece chorar. Foi hoje. Que alívio.
Segui para o centro médico da área da minha residência, onde fui atendida por um clínico geral quase idoso, que ouviu a verdade nua e crua da minha boca. Apesar disso, deixou escapar sem um sorriso - hoje era só sorumbáticos no meu caminho - as minhas melhores piadas da tarde: Tenho um galinheiro dentro do peito (para explicar a pieira que ouço quando respiro) e Já não tenho mais coisas tristes para lhe contar (quando acabei o relato das minhas desgraças). Disse-me que pertencia a uma associação de carácter religioso e falou-me de adultério. A minha vida é bordada a ouro. Auscultou-me, basicamente confirmou o meu primeiro autodiagnóstico (alergia), e, quando me perguntou a profissão, deu-me um miminho (eu cá gostei, chiu): Eu também tenho uma [profissão de LP] assim, magrinha como a [título académico de LP]. A minha mulher, quando a viu, até me disse: "Se eu não soubesse que é a nossa [profissão de LP], não te deixava andar com aquela Barbie na rua". Tivesse eu audição, e teria começado a ouvir Hi, Barbie!, Hi Ken!, Do you wanna go for a ride?
Mandou-me tomar anti-histamínico. O dealer.
Os anti-histamínicos, a mim, dão-me sono. Eu sei que dão a toda a gente. Mas não. Não é a mesma coisa, creiam-me. Capaz de chegar a babar-me em público e tudo.
Nos próximos dias, escreve-vos uma agarrada. Para variar desta lucidez toda, que até enerva.

Todos iguais


Promessas

Era eu ter agora dez ou onze anos de idade e pegava numa folha A 5, de linhas azuis, arrancada de um maço para dossier, na minha bic azul (porque a preta me dava azar e porque o mar é azul e é de azul que ele gosta), e escrevia uma daquelas promessas que tantas vezes passei para o papel - com sorte, um destes dias, ainda encontro, para ali numa caixa, um desses papeis - Meu Deus, Meu Deus, faz com que o meu pai me deixe ir à festa do Pedro Nunes (estas já eram feitas no final da idade da inocência, se é que essa algum dia acabou).

Meu Deus, Minha Nossa Senhora [tudo com maiúsculas, para não irritar os superiores, uma manifestação de raiz tão portuguesa], faço esta promessa porque estou desesperada e preciso muito de ser ouvida, por causa do meu ouvido [ia a eito, com pleonasmos e tudo] direito, que está tapado há muitos dias, e eu não quero ficar surda. Se o ouvido destapar nos próximos três dias [dava prazos, adivinhava-se em mim um cobrador, desconheço como nunca vesti o fraque], prometo:
- Rezar 10 Avé Marias.
- Rezar 10 Pai Nossos.
(não posso prometer rezar 10 Salve Rainhas porque não sei)
[E, naquele tempo, não havia internet, não dava para googlar, ler a oração, Salve Rainha, mãe de Deus, enquanto se come uma taça de cereais e se sente que se está a rezar]
- Não dizer palavrões durante uma semana.
[Naquele tempo era mais fácil. Era possível]
- Não pensar mal de ninguém.
[Já havia em mim uma crítica social, uma opinion maker. Uma fashionerer - sim, também faço neologismos em estrangeiro]
- Não pensar em rapazes.
[Que tormenta, nunca cumprida]
- Comer tudo à mesa.
[Outra tormenta. E, provavelmente, uma associação de ideias com a anterior, vá-se lá perceber a mente retorcida de uma miudinha tão precoce]
- Não me rir nas aulas.
[Esta, nunca consegui cumprir. Nunca. I know, I'm a sociopath]
- Não me zangar quando a professora de desenho me chama preguiçosa.
[Vamos lá a ver: a senhora descobriu-me talento. Achava que eu podia fazer mais e melhor, mas não me explicava em quê. Devia querer que agarrasse nas trinchas e no rolo e pintasse a parede da sala de aulas. Não sei, até hoje, e, provavelmente, nunca saberei]
- Não me zangar quando a professora de português me ralha.
[Vamos lá a ver: a senhora descobriu-me talento. Achava que eu podia fazer mais e melhor, mas não me explicava em quê. Devia querer que eu escrevesse, naquela idade, uma antologia, uma obra poética, a minha biografia em três páginas ou qualquer coisa para os anais (hah). Não sei, até hoje,  e, provavelmente, nunca saberei]
- Ir do meu quarto até à sala de joelhos e depois voltar (vou fazer isto sem o pai e a mãe verem).
[Pudera, se o meu pai visse, içava-me pelos ombros e dizia "Está parva, a rapariga", e a minha mãe, ou nem dava pela minha passagem, ou, se desse, era capaz de comentar "Que coisa tão ridícula". Não sei como é que o meu percurso nunca incluiu uma passagem pela casa-de-banho, com descarga de autoclismo e siga. Eu era uma incompreendida, como são todas as miúdas daquela idade].

Assim, como não escrevi nada daquilo, o meu ouvido continua surdo.
Vou mas é ao médico e deixar-me de merdas, à espera de milagres.

20/04/2015

Da distinção entre blogues bons e blogues maus

Da distinção entre blogues femininos e blogues masculinos

Uma pessoa passa uma vida inteira a lutar, com unhas e dentes e o resto das faneras todas, por ouvir, dito com um mínimo de sinceridade, brilho no olhar e isento de inflexões estúpidas de voz e fífias de falsete, que as advogadas são tão boas como os advogados, que as engenheiras são tão boas como os engenheiros, que as médicas são tão boas como os médicos, que as hospedeiras devem ganhar o mesmo que os seus colegas comissários de bordo, que salários iguais para tarefas semelhantes, que até andámos a assinar tratados internacionais e chamámos a isso princípio da não discriminação entre trabalhadores masculinos e trabalhadores femininos (oi, oi, oi, ele existe, ele vive, e tem este nome!), e que o que nos distingue não pode ser o que trazemos entre-pernas (cá em baixo está o tiroliroló), mas talvez o que trazemos lá em cima (onde está o tiroliro), e não é que é aqui mesmo, na blogosfera, que se dá, com sistemática persistência, exemplar tenacidade e alguma teimosia asnosa, o toque na nota musical dó, que é a da diferenciação, discriminação, distinção? Dó...

Dá-me que pensar, cada vez que vejo escrito "um dos melhores blogues masculinos", para classificar como bom um blog. Ou "um excelente blog de homem". Como se o facto de ser escrito por um homem ou por uma mulher, à partida, lhe inculcasse um estigma ou um rótulo qualquer, Atenção, olha que isto é escrito por um homem, logo, a qualidade é medida noutra escala. Expliquem-me lá isto, que eu ando a carburar devagar: mas então, os blogues usam gravata? Usam bigode? Têm lá uma pila? 
E os temas? Os temas são só de gajo? Do que é que lá se fala, que nós nem alcancemos, nem corroboremos, nem nos interessemos, nem partilhemos? De gajas, futebol e carros? Onde é que andam esses blogues masculinos, que eu não conheço? Ah, oh, não quero conhecer.

Estou fora da caixa, é o que eu digo. 
Porque é fácil perceber os temas femininos: unhas, trapos, bebés, laçarotes, tachos, gajos-na-óptica-da-utilizadora, celulite, depilação, cremes e derivados. Em princípio, salvo uma ou duas excepções, não há homens a escrever sobre estes assuntos (estive para pôr aspas ou itálico nesta última, mas ainda era por aí que me lixava). Ou, pelo menos, não há homens a escrever com a mesma frequência sobre esses tais super-assuntos (ai, não resisti ao superlativo, agora é que vão ser elas). 
Hoje não me apetece chamar nomes para aqui, nem pôr links a ilustrar, mas eu conheço, e toda a gente conhece, um excelente blog, escrito por um homem, que, não sendo um baby blog, de cada vez que fala sobre a filha, é só o melhor baby blog da blogosfera. 

Ou seja, se nem sequer há temas exclusivos entre sexos, por que raios é que continua a distinguir-se os blogues entre rosinha e azulinho?

E depois, quanto aos grandes - grandiosos, bem talhados, maravilhosos, perfeitos - textos literários, jornalísticos, culturais, românticos, poéticos, esses também têm sexo? Eu não consigo distinguir a bela prosa, aquilo a que dantes se chamava a rica pluma, por ela provir de um homem ou de uma mulher. Quanto muito, consigo distinguir a boa tecla, de quem escreve com as mãos, da má tecla, de quem escreve com os pés (calma aí com os nervos, que eu sei perfeitamente que tenho dias de escrever com a ponta das nalgas, nem sequer é com os pés - de tão mau que aquilo me sai). Mas isso é completamente independente do facto de quem escreve ter mãos e pés femininos ou masculinos.

A qualidade não tem sexo. Ponto. Chiu. Caluda. Acabou a conversa parva.

Estou melhor, muito obrigada. Ou então, fui abduzida.

Mas vou, na mesma, oferecer-me para uma fábrica de colas de contacto. O que vale é que já não tenho adenóides, caso contrário teriam ficado agarrados à última folha de um rolo inteirinho de papel higiénico, que não resistiu a tantas solicitações seguidas e deu o peido mestre por conta das minhas assoadelas agora de manhãzinha. 



Também já tenho cara de gente, a avaliar por mim. Vi-me ao espelho e achei. Mas também posso estar a perder mais algum sentido e não conseguir perceber que aquela, afinal, sou eu, mas em versão pós-adbução por alienígenas, que é o que os iluminados dizem das pessoas como eu, portadoras de RH negativo.

Eu acho que estou melhor. Quer dizer...

19/04/2015

Perdi (metade d) os sentidos

Por este andar, vou transformar este blog n' O DIÁRIO DA MINHA GOSMA.

Neste momento, tenho ao meu dispor metade dos sentidos. Pode dizer-se que ando semi-desmaiada. Ou semi-acordada, conforme sois da raça de achar que o copo está meio cheio, ou meio vazio, ou ao contrário (já baralhados, ou posso continuar?). Isto de andar neste estado engraçado também dá cabo dos fusíveis à pessoa.
Tenho os dois ouvidos totalmente tapados. Não fora cá por coisas, até desconfiava que alguém, durante a noite, me veio aqui enfiar dois tampões orelhas adentro (não, Tampax, eu avisei-vos que não fazia parcerias tão íntimas). Ou que me tentaram assassinar, enfiando-me a cabeça num barril de tintol carrascão. É que tenho mesmo a sensação de ter água dentro dos ouvidos. No entanto, quando mexo a cabeça, não ouço aquele som dos oceanos que uma pessoa ouve quando mergulha à prego ou mete o duche pelos abanos, que até parece que fica com um búzio dentro do crânio. É mexer a bola e splash, aquele som. Pois, eu isso não tenho. É só mesmo a sensação de ter a cabeça enfiada numa câmara de som. Ou numa touca ridícula, daquelas de borracha. Chego a lançar-lhe as mãos, em pânico, que lá surda é uma coisa, cá figuras de tonta dos anos 70, é outra totalmente diferente. Portanto, ouço para aí metade do que me dizem, e do que eu própria digo, mas sem qualquer tipo de critério selectivo. Por exemplo, dizem-me duas frases, eu não ouço uma e desouço a outra. Não, é muito mais divertido. Assim: Frase 1 - Linda Porca, tu és tão bela, não sei como nunca ganhaste um Oscar só por tamanha beleza. Frase 2 - Linda Porca, tu és uma sumidade de inteligência, admira que nunca tenhas recebido um Nobel de qualquer coisa. Eu ouço: Linda... tu és... bela... Oscar... beleza... inteligência... Nobel. Pronto, lá se gera o caos, comigo à procura da estatueta. Metade da informação perde-se.
Perdi, igualmente, há quarenta e oito horas, o paladar e o olfacto. Nos últimos dois dias, fui mimada com refeições que não fiz e outras compradas fora. Ora bem, desde sushi a hambúrguer em bolo do caco, a uns peitos de franga prostrados em legumes que têm imenso sabor (courgetes, pimentos amarelos, tomate - no singular, no singular), até ao cúmulo de uma papa Cerelac com pedaços de Ritter Sport branco com avelãs lá metidos dentro, tudo-tudo-tudo, sem excepção, me soube a papel. Eu conheço o sabor do papel, ok?
Nem pelo nariz consigo sentir o sabor dos alimentos. Não sinto o cheiro a coisa nenhuma. 
A vantagem? Olha, podia andar de metro, para lá e para cá, fazer a linha verde toda, que é a mais odorífera, à hora de ponta, em pleno Verão, de cabecinha encostada ao sovaco daquelas camisas com um pouco de nylon, que, normalmente, acompanham com aqueles cabelos em cama de óleo e aqueles bigodes farfallos, a descansar da minha vida.

Balneários de ginásios

Eu já sabia tudo o que se passa num balneário feminino de qualquer ginásio.
Ao contrário do que muita gente pensa, não se encontram corpos tonificados e belos, rabos e mamas no lugar, ou, sequer, gente que saiba vestir umas cuecas sem parecer que acabou de revestir com película um bolo mal cozido. Ou melhor, não é a regra.
Não. Desenganem-se os homens. Apesar de esfoladas de esforço, preocupadas com a dieta, cuidadosas com a aparência, as mulheres conseguem descer muito baixo na hora de marchar para o duche e, a seguir, exibir a lingerie desajustada, escafiada, foleira.
Vi outro dia um rabo pejado de celulite, com um fio dental posto em cima-dentro, e tatuado. Vamos lá a ver: eu não tenho nada contra a celulite, reparem. Se tivesse, há muito que não teria nem um grão dela. Não tenho nada contra o fio dental. Se tivesse, há muito que teria deixado de fazer máquinas de roupa na minha casa. Eu não tenho nada contra a tatuagem, desde que chapada nas outras, nos rabos das outras, que cá de mim e do meu sei eu. Mas, as três coisas juntas, todas na mesma peida, foi imagem que me vai acompanhar nos piores pesadelos enquanto me mantiver minimamente lúcida e para lá dos limites da demência, se é que não contribuirá, mesmo, para a antecipar.
Já quanto aos balneários masculinos, a crónica do Bruno Nogueira de quarta-feira, na TSF, representou a abertura a todo um mundo que eu desconhecia, se calhar por não ter, algum dia, frequentado um. Na verdade, nunca tinha pensado que um balneário masculino teria tantos... genitais. Ele há coisas demasiado lógicas, que são os nossos axiominhas, para que nos detenhamos a pensar sobre elas. Esta era uma: balneário dos meninos, pilinhas; balneário das meninas, pipis. Pronto, para mais do que esta regra de jardim de infância, não me arrisquei, confesso. Daí a revelação que foi ouvir este relato, digamos, da bola.
Se, antes de o ouvir, estava convencida de que os nossos balneários são antros, não propriamente de terror, mas de wtf-is-that-great-shit?, não-olhes-para-ali, mas-por-que-raio-é-que-esta-está-a-olhar, deves-te-achar, ai-que-horror-de-mamas, ai-que-horror-de-cu, o-que-é-que-aquela-tem-na..., etc., agora sei que, os deles, são o último reduto da vergonha e do pudor humanos, ou melhor, em que uma e outro morreram à porta. 
Somo e sigo na convicção íntima - literalmente - que me acompanha desde sempre: ainda bem que nasci mulher. Se já tinha as outras razões todas, extrema mas assumidamente machistas, agora tenho mais esta: sempre é menos uma pila, para ali, a abanar-se. Puxa.

Chico-smart não me tem em grande conta # 2

Recebo uma mensagem da comadre, a saber da minha saúde.
Pretendo dizer apenas que já não tenho febre.
Mas chico-smart, sempre mal-intencionado, apresenta-me outras hipóteses:


18/04/2015

Acordei falecida


Aviso já que este post é nojento. Tenho a cabeça cheia de ranho verde e não consigo pensar em mais nada, precisamente por tê-la ocupada por ele. Eu sei que podia ficar calada. E que o calado tudo vence. E que quem vai à guerra dá e leva. E que tantas vezes vai o cântaro à fonte, e o caneco. Mas, assim como com toda a trampa que está alojada do meu pescoço para cima, eu preciso de deitar cá para fora um enxorrilho.

Olha, é assim: quem for sensível, pode sempre mudar de canal. Blogs fofinhos e com lacinhos amorosos é o que não falta para aí. E aqui vai falar-se de chichi, sangue, ranho e diarreia. Nem sei como me escaparão algumas caganitas, para compor, tipo cereja. No topo. Pronto.

Todas as minhas secreções das vias altas estão em actividade. Pareço um vulcão - mas não sexual, não pensem. De resto, estou completamente fora de combate para qualquer lide libidinosa. Parece que levei um tiro na cabeça, que me entrou pelo ouvido direito e cuja bala, feita maricas, nele se alojou, em vez de continuar o seu percurso lógico. 
Depois de uma noite febril, tossil e ranhil, icei um braço na direcção do telemóvel e liguei a uma das comadres, mulher de médico, que, não tendo, ela própria, qualquer formação ou experiência em medicina, me faz sempre a triagem. 

A palavra triagem traz-me à memória certo enfermeiro do Hospital da Luz, que, após confusão com o meu nome, e por me ter chamado Marti, lhe perguntei se tinha ares de desenho animado, e me respondeu "Madagáscar!". Maravilhoso episódio da minha vida, que durou seis horas, durante as quais me passeei por aqueles corredores, por duas vezes (fiz análises - adoro esta palavra - repetidas, porque perderam o meu chichi dentro do hospital), com um boião cheio com a minha própria urina, de cachecol amarelo e mala amarela, a perguntar suficientemente alto, "Adonde é que deixo a minha órina pránálze?". Este episódio merecia ser contado em conto para as crianças e dele feito um, já não digo filme, mas um clip, designadamente porque terminou da forma mais inesperada para mim, que foi o momento em que, à meia-noite, entrei no gabinete de uma médica estafada e despenteada (se calhar, tinha andado na rambóia, a devassa), recapitulei a minha queixa principal - sangue na urina - e perguntei, ingenuamente: "Ai, ó senhora doutora, agora que falo nisso, é que me ocorre que este sangue pode não ser uma infecção urinária...". Vai daí, acho que só não fui expulsa por indecente e má figura porque os níveis de cansaço, ali dentro, haviam atingido o pico mais alto da noite de banco, ou em branco, sei lá eu. Às tantas, passei outra vez por atrasada mental, mas que se lixe, a isso já eu estou habituada. Raras são as pessoas humanas capazes de reconhecer uma alma de artista.
A ver se encontro a descrição desse dia noutro blog que tinha na altura. Acabou por ser uma tarde-noite bem passada (não, para mim é quase em sangue, cá agora carne bem passada, isso é para meninos).

Para a comadre, comecei o telefonema, dizendo: "Comadre, morri". Ponto de partida para  um entendimento perfeito entre nós.
Diz-me a comadre:
- De que cor é o teu ranho? Transparente ou amarelo e verde?
- Verde e espesso.
- E quando tosses?
- Queres mesmo saber a verdade?
- É melhor. Não me escondas nada.
- É que não sei. Mas acho que é igual ao do nariz. E dói-me o ouvido. Parece que tenho aqui um túnel do metro, faz vvvuuuuu cada vez que tusso. Também devo ter do tal ranho metido dentro do ouvido.
- Verde...
- Verde.
- Olha, o Pedro vai-te receitar Augmentin, que ele tem a mania. Mas o Augmentin, a mim, faz-me diarreia.
(Não havia necessidade, comadre. Quer dizer, a conversa tinha descido, mas daí até à liquidificação da feze, a mim pareceu-me demais)
- Mas tu sabes que nada me provoca esses desarranjos, sou uma tripa santa. Deixa-o lá receitar o que ele quiser, que eu aguento tudo.

Receitou Augmentin. 
Está tudo bem.
Eu não disse que não falava de caganitas? Não falei.

17/04/2015

Isto é o que acontece quando metes um macaco numa loja de cristais


Apesar de extremamente enferma, fui-me ao teatro. Era prometido, era devido, bilhetes à borla, e nem que estivesse entubada até à baixa - tipo algaliada -, nada me demoveria, assim como não demoveu. Culturgest, peça em espanhol, com legendas em português, que bien hablas portuñol, pero tienes que lier con lejiendas, sinon non piescas nadia, las chicas y los guapos hablan tan depriessa, Dios ayudanos, por supuesto. 

1. º - Eu estava febrilíssima;
2.º - A noite até pode ser uma criança, mas mais criança ainda, sou eu;
3.º - A cena dos ben-u-rons e brufens, a vocês, não sei, mas a mim dão-me uma paz que pareço um budista. Ou o próprio buda, mas em magro e com cabelo;
4.º - Apanhei-me numa cadeira tão confortável como um berço (CGD, tu rulas, aquele grande auditório é mas é um grande berçário!);
5.º - As legendas são-me fatais. 

É uma mão-cheia de razões que explicam que dormi.
Não dormi-dormi, tipo de cabeça de lado, boca aberta e a babar-me para o ombro, mas reconheço que juntei as pestanas de cima com as de baixo. 
No entanto, gostei muito da peça.
Sei lá qual era o tema - mira, bale, concha de tu madre (ide ao tradutor, que a mim, as legendas, me esclareceram, mas aqui eu não escrevo, porque isto é um buraco limpinho), tranquilo [tranqilo], si cariño, ai dame - não, isto não devo ter ouvido, era a brincar -, mi casa es tu casa y tiengo ganas de vivir. 
Ainda antes de começar a actuação, e já com aqueles três grandes malucos (Manel Esfrega, és o meu preferido!) a fazerem-me fosquinhas, tive tempo para fazer um pequeno estudo antropológico sobre as personagens que fazem parte da plateia obrigatória de toda a peça que se preze. A saber:

- O gajo do cachecol esquisito, que acompanha com uma voz grasnada, à La Feria;
- A gaja do cabelo completamente no ar, tipo Hair, e mais espaço houvesse para mais volume;
- O gajo das barbas densas e negras, praticamente até aos pés, que tem um cachimbo mental pendurado delas;
- A gaja idosa, que foi enganada e lhe disseram que ia para o São Carlos, lá se aperaltou demasiado;
- A gaja do cabelo verde/azul/rosa-velho/wtf;
- A adolescente que caiu na esparrela e não encontra o grupo;
- O hiperactivo que quer imenso sentar-se e quer imenso ver a peça e quer imenso calar-se e quer imenso que aquilo acabe no tempo de um traque;
- O casal homossexual hipster;
- O estrangeiro que não tem nada para fazer e cumpre um estricto roteiro;
- O intelectual de meia-idade, que precisa do casaco de xadrez e do jornal entalado na axila do mesmo;
- O gajo que ia ali a passar à porta e viu movimento;
- A parola que ouviu dizer.

E depois há eu. Que até podia, mas não me insiro em nenhuma destas categorias, como um mutante, no fundo sempre sozinho, seguindo o seu caminho, ai de mim que sou assim (isto roubei à Daniela Mercury, mas estou deserta para meter mais um link, a dispersar do meu post. Olha...)

Bojador

Temos contas a ajustar, ele e eu, um destes dias. Não sei se serão ajustadas, ou justas, alguma vez, mas terão que ser feitas, sob penas, duras penas, de este meu deve e haver ficar sempre para sempre num défice que me dói a mim, muito mais do que a ele, que não precisa de mim para nada, mais uma gota no oceano, e qual deles não pode dispensar uma das suas lágrimas? Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor.

Fui-lhe apresentada ainda pequena, teria sete anos, mas já me falavam dele antes disso. Descreveram-mo como justo e bom, outro pai, o que, à escala da idade, me trouxe a imagem, por imaginação infantil, de colo, sorrisos, histórias - ah, e também aqueles olhos t'amo-t'amo que o meu pai tinha - para uma filha imperfeita, que ainda não sabe amar como as pessoas crescidas preferem ser, mas que sabe muito bem ser amada sem porquê, nem ses nenhuns, nem há cá talvez. Mas, com o tempo, apesar de não ter crescido nem um centímetro desde que fomos apresentados, surgiu-me aos olhos uma figura silenciosa, para a qual eu falava sem que alguma vez me respondesse, a quem eu confessava os meus piores e prometia os meus melhores, e que me cobrava uma linearidade que eu não sabia traçar, que nem o meu pai, tão amado, alguma vez me pôs ou impôs. 
Um dia, só pode ter sido por isso, investido de ciúmes pelo amor desmedido que tínhamos, pôs-me à prova e deu-me a provação maior, dando-me a provar a possibilidade de o perder, pedra de toque que, mal toca o coração, o fere, mas ainda desmede mais o amor. Nos cuidados intensivos e, depois, no quarto dele, no hospital onde me aprendi a viver por meses depois da escola, fazendo toucas de enfermeira em papel, pondo-as na cabeça e dando injecções às bonecas todas, mas, e sobretudo, segurando-o à vida, segurando-lhe as mãos, pousadas na cama mais alta que eu, a cheirar a lençóis, pedindo-lhe calada Não me deixe, não se deixe morrer, não me morra, não me deixe morrer - e ficando calada - nem sei como aguentava - Agora cala-te que o pai precisa de descansar, para as bonecas a mesma ordem, Agora calem-se que o pai precisa de descansar. Tinha tanto medo. Foi aos sete anos que percebi que o amor quantificável aumenta, se for confrontado com a iminência da perda, e que o meu pelo meu pai se desmesurou em tamanho e volume e altura e lonjura e profundidade e densidade. 
Enquanto isso, ele cobrava-me os pedidos, nunca satisfeito com a quantidade de horas de sono que eu me roubava para o atender, naquela ânsia de mim e das minhas súplicas, que eu nunca vou perceber se ele achava indignas ou inúteis, pois nem água-vai naquele meu dialólogo, achava eu que diálogo, a falar sozinha desde o início das nossas minhas conversas. Devolveu-me o pai mesmo à justa de mo tirar, deveria eu ter-lhe ficado eternamente grata, não fora ter perdido as forças, a crença e a infância toda desde o nascimento.

Dez anos depois, julguei tê-lo encontrado em Descartes, pareceu-me tão óbvia a explicação da existência dele, uma regra tão matemática, se eu me tivesse autocriado, teria posto em mim todos os elementos da virtude, mas sou tão imperfeito, que só posso ter sido criado por um ser perfeito e superior, isto era tão lógico que me entrou pela cabeça adentro, mas nunca me ocupou o coração. Pode ter sido porque já não tivesse sete anos e nem nunca os tenha tido. 

Outros dez passaram, enchi-me de vida por dentro e ele fez-me a mais cruel troca-por-troca de que se lembrou: Dou-te uma criança, dás-me o teu pai. O amor que lhe tens faz falta à criança que vem. E eu considero-te incapaz de amar tanto duas pessoas ao mesmo tempo. A seguir àquela, vieram outras, e eu, naquele estado de graça, ficava quase mística, que engraçado. Fazia trocas, pedidos, promessas, chantagem, ameaças e negócios com ele. Tinha tanto medo. Mas estava a operar um milagre, sentia-me à altura dele, até um bocadinho de nada superior. Homem, que sabia ele do que significa esperar por um filho, cujos pés nos empurram o estômago, haverá lá milagre mais milagroso do que uns pezinhos a dar toques ao nosso estômago? Soberba. Ainda assim, sabia-me dependente da vontade dele, umas vezes soberana, outras cruel, outras injusta, outras de Pai. Pedia-lhe protecção e saúde para a minha criança. Perdi uma e achei-me roubada por ele. Talvez não lhe tivesse falado com convicção e fervor suficientes. Voltei, então, aos nossos meus dialólogos. Uma vez, pedi-lhe: Preciso de confirmar uma coisa contigo e, por isso, peço-te agora que me dês uma criança do mesmo sexo da que me levaste. E nasceu-me um rapaz.
É só por isso que eu sei que, um dia, perdi um rapaz.
Tenho uma estranha forma de não acreditar em Deus, eu.