por ir sozinha, sem a minha companheira destas estupendices, por estar em competições internacionais das suas danças — e já ter no papinho que eu fiz e me cheirou a bebé até que deixou de ser possível cheirá-lo, dois primeiros e um segundo prémios —, e essa ausência dela me imprimir a responsabilidade acrescida de correr pelas duas, ou por ter tomado magnésio e uma beberagem hidratante que sabia a Coca-Cola mas era doce e enjoativa como mel, ou terá sido aquele segundo café do dia que não tomo há anos e vai permitir que eu adormeça talvez depois de amanhã, ou então daquela ida à casa-de-banho fazer duas gotas de chichi, mas que me haviam convencido que iam transformar-se em dois litros, e ter estado dez minutos metida numa escada estreita com cada degrau, sua mulher, um cheiro contagioso a amoníaco das trezentas urinas já ali depositadas, mas um autoclismo corajoso e espadaúdo, gargalhadas escadas abaixo, ou se foi do cantil de dois litros que levei às costas e me dava um misterioso ar de fumadora de cachimbo de água, mas me manteve hidratada todo o caminho, não tivesse eu bebido três quartas partes do conteúdo, ou se foi da chuva, que não deu tréguas e soube tão bem, água no suor, hão-de experimentar, mas me obrigou a colocar o boné cor-de-rosa bordado com “Never give up” e o laço, porque o hijab que havia feito com a blusinha estava a permitir que a chuva me borrasse o rímel e então ia chegar à meta como um membro dos Kiss, ou se foi a gana de completar a corrida sem abrandamentos de passada larga, a verdade é que não desacelerei, não parei, e fiz o meu pior tempo de sempre, mas foi a primeira corrida feita de seguida no meu pós-guerra e pode ter sido a minha melhor corrida de toda a vida, sempre, para Sempre Mulher.
06/04/2025
25/02/2025
Uma de nós
Começámos o programa um pouco por curiosidade e interesse em informação acerca do que nos traria a vida pós-cancro, éramos todas desconhecidas, unidas por um laço triste como são os da pouca sorte, iguais àqueles que domam à força um cavalo selvagem.
Com o passar das semanas, algumas desistiram por motivos lá delas, outras mantivemo-nos intactas, procurando, através do exercício físico, respostas para os nossos corpos retalhados e as nossas cabeças quebradas. O ambiente foi sempre cordial e, às vezes, alegre.
Mas ontem houve abraços e houve lágrimas. A uma de nós apareceu “uma coisa” num pulmão. Todas vivemos com esses dois monstros a ensombrarem-nos os dias e as noites, sejam de sol, de chuva ou de lua cheia: os pulmões e o cérebro, para onde dispara, quando prime o gatilho, o que tivemos, umas há três anos, outras há cinco, cada caso é um caso, cada organismo é um organismo. Temos estes chavões gravados com ferro em brasa nas nossas almas, agarramo-nos a eles nas horas mais aflitas e também nas mais aliviadas.
Dei comigo a dizer-lhe: “Deus é grande, não há-de permitir. O pior já nós passámos”, logo eu, que só acredito num Ser maior, que tudo pode e nem sempre nos faz a vontade, mas não me levem aos padres, que eu não fui feita para aqueles rituais sem nexo nem lógica.
Deus é grande, não há-de permitir. O pior já nós passámos.
24/02/2025
Dez dias, três borboteiras
Precisava com urgência para anteontem de uma borboteira, e então mandei vir daquela megastore da China (já sei as vossas opiniões, as quais partilho, porém também me farta pagar a multiplicar por dez pela mesma m. que posso pagar a dividir por dez),
(aliás, aprendam comigo, que eu, injustamente, não duro para sempre: também havia mandado vir da mesma mega um par de sapatos de dança, depois recebi um mail a confirmar o envio, depois recebi outro a anunciar que o meu pagamento tinha um defeito qualquer, refiz a encomenda, acrescentei três itens à minha vontade, um dos quais os sapatos de dança e, antes de pagar, lembrei-me que a primeira encomenda já vinha a caminho, fechei a aplicação sem ter pago a segunda, e não pensei mais nisso, até ao dia em que me chegaram a casa os cinco artigos, dois pares de sapatos de dança incluídos. São tão extremamente confortáveis que só me apetece dormir com eles, e custaram doze paus — um par, porque o outro, conforme já disse, me saiu de graça e ofereci logo à que fala tanto, a ver se ela se calava. Não calou.)
porque até havia uma no lar, mas não a encontrei na balbúrdia da minha casa nem no caos de uma das arrecadações, pelo que presumo que deu o peido mestre e foi com a vara. Chegou-me uma coisa que fazia o barulho de borboteira, praticamente não tinha depósito para borbotos e era recarregável como um telemóvel, algo de inalcançavelmente evoluído. Vai que só tinha cerca de cinco minutos de autonomia, o que nem chega para a manga de um pullover, e depois era preciso esperar talvez doze horas para que a máquina se autonomizasse de novo. Como não sei falar mandarim, fui em demanda por outra.
Chego à loja da catedral, onde normalmente sou bem servida pois fujo a sete ou oito pés da que começa por Wor e acaba em ten (nunca comprei lá nada que não viesse avariado, ou não avariasse no espaço de uma semana), acerco-me de uma funcionária cujos olhos dispararam na minha direcção um "odeio-te" muito claro, vá-se lá perceber porquê (havia de ter-lhe perguntado por uma rebarbadora para o buço, mas nunca me lembro destas piadas no momento certo), e digo:
- Boa tarde. Ando à procura de uma borboteira.
- Boa tarde. Hã? Borboteira? — E era ver o nariz dela, ou lá o que era aquilo, alçar-se todo para cima, os dentes de cima, ou lá o que eram aquilos, todos à mostra, a chispar. Lembrou-me aquelas hienas do Rei Leão, mas eu estava em missão, não queria perder o foco. — A senhora quer dizer 'uma máquina para tirar borbotos?' [Oh, pá, está aqui uma sumidade linguística a perder-se a vender tralha eléctrica, agora percebo a revolta.] [Que nome sugeriria sua sumidade para uma máquina que só serve mesmo para tirar borbotos? "Depilaborbotos"? "Saca-bolas da lã"?]
- Sim.
Mostrou-me duas ou três marcas, modelos todos iguais, pequenas e frágeis como eu já tive uma, que arrancam um borboto de cada vez e não os trinta mil de que cada pullover de cônjuge já padecia, além do que mordem que se fartam, à pincher, e fazem buracos na lã.
- Muito obrigada, quero daquelas grandes que parecem um ferro de engomar. Lá terei que ir à Wor ten.
E fui. Muito bem atendida, desta vez era um homem, que entendeu a palavra "borboteira", me fez a encomenda para a fábrica/ armazém e prometeu que a teria daí a três dias. Assim aconteceu, máquina maravilha, limpou duas ou três camisolas e, ao terceiro dia, descansou. Eternamente. Confirmada a minha teoria pela enésima vez, devolvi-a e recebi a quantia que despendera por ela.
Meti-me numa loja de rua que vende quase tudo o que é eléctrico, pedi por uma borboteira, o senhor percebeu a palavra e simplesmente vendeu-me uma máquina decente, que já limpou o que faltava limpar e está ali para as curvas que as lãs também têm.
Moral da história: nenhuma. Foram três borboteiras em dez dias. Nada má, esta média, como sempre, em mim.