26/06/2017

Um castigo de mulher

Sentadinha na esplanada, curtindo a minha saborosa solidão do momento, único e irrepetível, como todos são, vejo-as passar, cada uma com uma trela, cada uma com um cão na outra ponta dela. Cães dóceis, jovens, com um comportamento normal — de cão. Já ouço uma das duas a ralhar — aquele timbre inconfundível de pratos metálicos a baterem uns nos outros, pautados pela palavra "castigo" — há uns segundos, o que me leva embora para todo o sempre um átomo de sossego, de forma absolutamente imperdoável. [Embora, se não fossem estas almas penadas das sombras da vida, eu não tivesse nada para escrever.] [Merci bien, les fantômes.]
Conheço-as a ambas de as ver passar, e de outros tempos também, em que os nossos — meus e delas — filhos coincidiram na mesma escola.
A voz de comando aproxima-se dos meus ouvidos, dirigida ao animal, que segue, irreverente, preso pelo pescoço:
- Estás de castigo. Deita aí já. E só não vais já para casa porque eu estou bem disposta. [Este era o tom, publicamente assumido, da pessoa no seu modo "bem disposta".] Deita!
Não satisfeita, porém, ainda vociferou para o desgraçado do animal da companheira de passeio canino:
- E tu também estás de castigo.
E eu, como eventualmente todas as humanas ali presentes, ficámos, também nós, imediatamente de castigo.

(Estas pessoas são mães.)
(Qual foi o momento em que quiseram ter um animal? Qual foi o momento em que se chatearam de o ter?)
(Diz-me como tratas os animais...)
(Tenho cada vez mais vontade de ter um cão. Só porque não tenho o direito de fazer um animal infeliz — falta de espaço, duas gatas parvas em casa, hiper-responsabilidade para a qual posso não estar preparada, impossibilidade de o levar para todo o lado e o terror de mais uma perda —, é que não tenho. Se não e senão, era já hoje.)

9 comentários:

  1. Anónimo26/6/17

    Assim como não temos o direito de fazer outra pessoa infeliz, também não o podemos fazer com os animais. Porque eles, ao contrário das (nem todas...) pessoas, não se podem defender.
    AL

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    1. É exactamente nesse ponto que os animais e as crianças se podem comparar: não pediram para.

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  2. Anónimo27/6/17

    Azulinha tu vê lá no que te vais meter ;) Eu "mãe"de dois estou mais presa por eles do que pelas minhas filhas...
    Mas são a minha paixão e não os consigo deixar com ninguém (maluca eu sei ).
    Beijinhos 🌸
    Miss

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    1. Eu sei, e também me conheço o suficiente para saber que ia afeiçoar-me logo e muito, e que isso ia ser mais uma "prisão", que não seria justa, nem para o animal, nem para os seis cá de casa. Se já me custa horrores deixar as gatas quando vamos de férias, que direi de um cão.
      Não és maluca, és mãe. E "mãe". Nós podemos tudo, até ser malucas. :)
      Beijinhos

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  3. https://youtu.be/LhUxL6lw_-g

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  4. O Christ ??

    ..." Assim defino a vida de quem tem
    Animais de estimação de vida sã
    E em barracas com ar condicionado
    Bichinhos que devoram croissants.
    Cães com casaquinhos de cambraia
    E gatos com golinhas de astracan."...

    :)))

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