12/09/2016

Olhe, por favor, pode só dar um olhinho às minhas coisas?

São estranhos, e são-me estranhos, quem estranhamente me pede que lhe tome conta dos pertences, aninhados sob o guarda-sol, enquanto vai ao mar. Quem lhes diz — que quem vê caras —, que eu não sou uma gatuna disfarçada de pessoa boa, ou então não sou — e é que sou, mas isso eles não sabem nem sonham — a maior distraída do planeta, ou, se não, pelo menos da praia toda? Tanto posso fixar toda a atenção de que sou capaz no espaço que me pediram para guardar, qual cão de fila, como basta que me voe rasante uma joaninha, voa, voa, e lá se me vai a incumbência pelos ares, atrás das asas de pintinhas pretas. Portanto, existe uma hipótese em mil de eu ser a pessoa certa para cumprir tal desígnio, mas, vá-se lá saber porquê, é a mim que toca, indiferentemente de pouco parar na toalha, e isso é coisa que qualquer um dos outros que me rodeia pode constatar logo aos dez minutos de vizinhança. 
Lembro-me das barracas, todas alinhadas junto às rochas, numa primeira fila de quem chega à praia, última de quem vem do mar. À frente, uma fileira de toldos, outras vezes duas, conforme o mar estava de feição, e de manhã estava sempre. Eram de pano-cru grosso, branco também ele cru, aquelas barracas da Caparica, enquanto nas praias de todo o país as plantavam de lona riscada de grosso. Em poucos dias, se faziam vizinhas vovós, titis e babás (que, na altura, se chamavam empregadas, ou criadas), trocando receitas, projectos de crochés, artes de tricôs e competências no espalhamento de cremes, entre o Benzibel e o Nivea da lata azul. Protegiam-nos com gordura branca, espessa, incómoda, e com um cheiro de infância que nunca mais nos abandonou a pele e os sentidos. Creio que foi nessa época que nasceu a vizinhança de confiança, a quem se podia entregar a barraca inteira, enquanto se acompanhava as crianças ao mar: Importa-se de tomar conta da minha barraca, enquanto eu vou ao mar com as crianças?, jeitinho que era retribuído pouco tempo depois. 
Por isso, não sei como é que alguém me confia a sua barraca, poucos minutos após aterrar na areia, logo a mim, a quem as pintas das asas de uma joaninha são capazes de levar toda a atenção.

4 comentários:

  1. Anónimo12/9/16

    deve ser, porque ainda cheiras a branco daquela infância bem vivida.
    boa noite Linda.
    um beijinho

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    1. Que comentário tão bonito, Mia :)
      Se for por essa razão, dou por bem empregue todo aquele creme espesso com que me besuntaram.
      Boa noite, um beijinho também para ti

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  2. E a bola da Nívea a dominar a praia... fiquei aqui a assistir à cena toda, desses tempos e de agora. Para além de ser igualmente distraída, fico sempre a pensar que o excesso de responsabilidade que sinto é proporcional ao excesso de confiança que depositaram em mim. Não gosto nada que me peçam esse tipo de coisas. Joaninha voa, voa!

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    1. Nem eu, Teresa. Pode ser um egoísmo, mas acho que é mais por medo de que aconteça alguma coisa e depois ainda tenha que ouvir um ralhete.
      É isso mesmo, voa!

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