19/07/2016

memória

Não queria ter visto, mas vi. Não temos capacidade para escolher o que nos adentra os olhos e, por isso, também a cabeça, a alma, e depois nos trespassa o coração. Não sei como fazem as pessoas que se arrogam uma memória selectiva, que eu também queria ter para mim e não sei onde nem como adquiri-la. O que me atinge a retina é igualmente o que me toca e amachuca.
Estava um calor impossível de ser verdade, a brisa que corria queimava o ar e entrava pela janela, fazendo com que a trave do blackout batesse ora cá, ora lá, como um pêndulo horizontal que marca a vida a compasso de espera. A hora era de modorra, entregues estavam muitos ao passar do tempo com vista ao lanche, com vista ao jantar, sem vista mar.
Ele, enorme, magro e triste. Não sai de mim a mágoa pela tal memória que eu queria selectiva e não sei onde nem como adquirir. Mesmo sentado, puxou as calças para baixo e expôs as pernas, que hão-de ter sido bonitas, longilíneas, musculadas e brancas. Era o calor que o matava e lhe fazia morrer a vergonha de se desnudar à frente das senhoras, senhor que foi e que é, mas não se lembrará. Chega-lhe ao pé a aflita, diz-lhe que se tape, puxa-lhe as calças para cima, mesmo sentado, e ele resiste e luta no sentido inverso, porque não compreende: tem calor, isso basta-lhe e devia bastar-lhe a ela também. É preciso gritar-lhe ao ouvido que não se pode despir na sala, e é aquele momento, em que ele baixa a cabeça e, num olhar aflito, se conforma, que ganho a certeza de que também eu, um dia, quero perder toda a memória, se não a puder perder já hoje.