03/04/2016

Escuta o eco

O dia raiou cinzento — como se no meio da cinza pudesse haver sol algum para que haja sequer raios. Estava escrito chuva no opaco do céu, e essa leitura imprimiu-me a dor da ausência e a mágoa da saudade que me trouxeram de volta a Mel, metáfora das minhas faltas e também das minhas falhas. 
A vida, às vezes, consegue ser muito estúpida — cínica, irónica, ou dada a coincidências diabólicas —, e dá-nos lições suplementares quando menos precisamos delas.

Avistei o autocarro ao longe, embora não estivesse tão longe quanto isso. Parado, os quatro piscas a piscar. Atrás, no centro de um cruzamento, prostrado na rigorosa intersecção da cruz, o corpo de um cão, e um homem, primeiro inclinado, depois flectido, curvado sobre o animal. Na rua, um silêncio sepulcral, e em todos os passeios que desenhavam os contornos da cruz, algumas pessoas quedas, paralisadas, suspensas. O homem e o cão, no centro do cruzamento, tão sós, tão-só.
Parei o carro atrás do autocarro parado, liguei também os piscas em sinal de fim de linha, e senti-me correr na direcção do homem e do animal, enquanto ouvia a minha voz, externa à minha garganta, saída cá do fundo e lá do fundo,
Precisa de ajuda?
O homem estava agora completamente acocorado sobre o asfalto negro e frio, passava os dois braços sob o corpo inerte e ainda quente do cão, segurando-o contra o peito. Quando se pôs em pé, a cara tinha a cor da morte, e os olhos o tom do suplício. Ouvi uma voz que era a minha repetir lá ao fundo,
Precisa de ajuda?
O homem fugiu a correr, calvário afora, carregando o animal morto ao colo, e então fiquei eu tão só, tão-só, no meio da cruz do cruzamento, a ouvir a voz de alguém que me pareceu ser eu, a perguntar-me,
Precisa de ajuda?
Não foi naquele momento que, finalmente, começou a chover. Mas sei que, quando voltei ao carro, vi cair água, com desalma, em sinal de alma ferida.

2 comentários:

  1. Eu sou uma palerma, mas custa-me tanto, tanto, ver o sofrimento dos animais e dos seus donos.

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    1. Olha, aí vão duas.
      Foi tão mau, tão mau.
      Ficámos sozinhos, o homem, o cão e eu. O resto do povo, ficou a olhar.

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