30/11/2015

Este ano, comecei a árvore pela base

Ainda não montei a árvore de Natal, mas já a comecei. Comprei a primeira prenda, ontem à noite — para mim. Na minha casa, as prendas põem-se na base da árvore, que é um tripé de plástico bastante mal enjorcado, e que convém tapar rapidamente (na verdade, ninguém se importa, mas eu sim). Aquele tripé chateia-me porque não me cheira a resina. E o Natal não me cheira a resina desde que tenho uma árvore artificial, a imitar um abeto. 
Nós fazíamos a árvore num pinheiro, altamente negociado com os vendedores ambulantes sazonais, e transportado rua acima, uma a agarrar o topo, a queixar-se que a caruma picava, a outra a agarrar no tronco, a queixar-se que tinha as mãos (ou as luvas de lã, porque estava sempre frio — dantes, em Lisboa, fazia frio em Dezembro) cheias de cola, mal sabendo que é, precisamente, com a resina que se fazem as colas. Depois roubávamos pedras da calçada portuguesa, metíamo-las dentro de um vaso grande e espetávamos lá o pinheiro, a cheirar a Natal durante um mês. Como devolvíamos as pedras à calçada depois do Ano Novo, talvez não fosse bem um roubo, mas sim um furto com reposição natural da situação, ou um empréstimo forçado (por uma boa causa).
Nem umas nem outra das árvores da minha vida foram de bases muito sólidas. Mesmo com as pedras todas, era comum o pinheiro tombar, normalmente durante a noite — porque, conforme se sabe, o Pai Natal faz incursões uns dias antes do 24, e, como é desastrado e gordo, desarruma tudo. Principalmente, se se tratar de apartamentos, como forma de vingança, por não ter uma chaminé por onde descer. 
Nem umas nem outra das árvores da minha vida foram de raízes profundas: na verdade, os pinheiros eram ramos de pinheiro adulto, por imposição legal para evitar a selvajaria do desarboramento. E esta árvore artificial que tenho agora, não cria raízes, nem que eu a deixe todo o ano plantada no chão da minha casa. 
A copa das árvores parece simbolizar o topo, numa escala hierárquica. 
No topo de uma árvore genealógica, encontram-se as pessoas que deram origem a todos os ramos que a compõem. 
Na vida, e principalmente na vida de uma árvore, a origem está na base, a importância está nas raízes — sem as quais todo o resto da árvore não existiria: qualquer daqueles ramos, até ao topo, teria a sua vida comprometida, ou inexistente, sem a existência, o vigor — a vitalidade — da raiz da árvore a que está agarrado, por dela fazer parte.
Por isso, este ano, comecei a árvore de Natal por baixo — mesmo antes de ela "nascer", alimentei o seu ponto mais importante: a raiz — eu.

É esta, a minha prenda para mim.
(imagem tirada da net, que a minha prenda está embrulhada a preceito)

Casaco de pêlo de gato

Durante o Verão, deixei, por diversas vezes, que Dona Mel Maria subisse para cima do bloco de gavetas do armário onde tenho os casacos de Inverno pendurados, e lá dormisse sestas inteiras. O meu casaco favorito é preto e Dona Mel é amarela. Ora, conforme é sabido, os gatos apreciam tudo o que é quente, e é preciso que esteja uma canícula de ananases para entrarem em modo onda de calor, esparramados pelo chão, a receberem a brisa que vem da frincha das portas. De resto, onde haja uma nesga de sol, um raio de radiador, um fofo onde alguém esteve recentemente sentado, that's the spot. E, regra geral, por uma questão de mimetismo, deitam-se em cima de superfícies que tenham a sua cor. Por isso, a Mel deita-se no soalho ou em cima de casacos e mantas amarelos, e a Mia tem preferência por roupa preta. Só que o meu casaco preto estava pendurado, e a Mel, apesar de amarela, encostou-se a ele vezes suficientes para mo transformar, verdadeiramente, num casaco de pêlo. Impossível levá-lo à rua vestido, a menos que fosse metido numa trela e a gritar-lhe Bobi, aqui, já!, de vez em quando. Se a experiência me dizia que, para tirar pêlo de gato dos tecidos, nada melhor do que a escova para escovar (ai o pleonasmo) gatos (aquela que uma pessoa compra e depois nunca usa, que os gatos não são parvos), desta vez, a excepção abriu-se de par em par e a escova mais não fez senão mudar os pêlos de lugar — da manga para a gola, de cima para baixo, um verdadeiro festim piloso. Também não percebi como é que a gata se encostou à zona das bainhas do casaco e havia pêlos até à gola, passando pelos ombros e sovacos incluídos. Vai, então, de molhar a escova, que é outro truque daqueles aprendidos há umas décadas, com a minha titi. Então, era ver os pêlos a mudarem de lugar, mas molhados. Uma nojeira. 
Depois de ponderar meter o casaco na máquina, atirá-lo pela janela, dá-lo à gata para que acabasse de o tingir de amarelo, tornar-me eremita com ele vestido, metê-lo no presépio a fazer de camelo de um rei mago, etecetera — e já com algum receio que o destino do casaco fosse o mesmo do meu vestido verde de Verão (basicamente, transformado numa batata frita), surgiu-me uma ideia absolutamente luminosa, embora não envolvesse lanternas: depilar o casaco. A cera estava mais ou menos posta de parte, não fosse agarrar-se toda, pelo que improvisei umas bandas de fita-cola grossa, daquela de isolar rodapés e interruptores aquando das pinturas, e, assim, retirei os pêlos ao meu casaco que, embora tendo ficado careca, voltou a ser preto. 
Aproveito esta ocasião — porque, no fundo, o post era para isso — para explicar por que é que tenho fita de isolar coisas em casa: é que eu, para além de coser (à mão e à máquina), bordar, tricotar e crochetar, cantar e dançar como uma profissa, ainda pinto paredes, quando é necessário pintá-las. Em certa ocasião, pintei o quarto do rapaz. Adivinhem lá de que cor. Pois. Devia ter usado uma tinta mais clara, que a que usei o escureceu um nico, mas ficou fixe. Também podia tê-lo pintado de cor-de-rosa, uma vez que o azul e o rosa são construções sociais (acho que nunca disse nada tão hipster). Mas pintei de azul, porque o mar é azul e é de azul que ele gosta * (e eu, tá?).


* in Paulina vestida de azul (sou mesmo culta, ó ié).

29/11/2015

mer | mère




Hoje fiz o pleno: mar e mãe no mesmo dia.
Encontrei-o bravo, mas alegre, coberto por um manto de espuma branca, tricotada para cá do horizonte.
Encontrei-a alegre, mas indomável, agasalhada numa blusinha branca, tricotada para lá do passado.
E, como sempre que junto os meus dois mares, cantei o que ouço a um deles, desde o tempo em que, deitada no berço, ainda ouvia nos búzios:

Je n'ai pas vingt ans

Na mesa ao lado, duas mulheres, francesas — uma na casa dos quarenta; a outra na mansão dos sessenta, mas bem "enxuta", não fora estarem ambas bem encharcadas garrafa adentro de um tinto que ainda haveria de lhes acompanhar a massa, a pizza e as respectivas bebedeiras. Não eram, com certeza, mãe e filha, porque demasiado camaradas, e mãe e filha nunca partilham estados etílicos, gargalhadas despudoradas, conversa de mecs uns tons acima do capaz de não ecoar no campo de audição da sala toda, e selfies de bocas escancaradas, tudo a um tempo, à mesa de um restaurante. Mesmo que provenham de uma Europa avançada e, agora, tristemente moderna.
Provavelmente fartas dos maus enquadramentos que a ebriedade lhes fornecia, pediu-me a mais nova que lhes tirasse uma fotografia, e logo outra, s'il vous plaît, e eu vai de colocar as duas ao centro, cabeças bamboleantes, e, por duas vezes, disparei à queima-roupa, à queima-maquilhagem, à queima-cabeleireiro — expondo, à mostra e à vista desarmada, as duas: alegres, descontraídas, maduras.
De alguma maneira, não ficaram satisfeitas com o resultado, trocaram mais mil palavras, numa espanholada francesa, e voltaram às selfies, e às fotografias uma à outra. Nesse momento, a mais velha protestou pela proximidade com que a outra colocou o telemóvel para a fotografar, e revelou uma evidência, que é uma verdade universal e transversal a todas as mulheres acima dos trinta anos:
- Je n'ai pas vingt ans!
E a outra, que também não os tinha, insistia em aproximar o aparelho do rosto enxuto da mais velha, enquanto ela repetia:
- Pas si près, je n'ai pas vingt ans!
Quase posso jurar que o ângulo escolhido pela fotógrafa me estava a atingir a mim também, porque comecei a sentir os disparos, um atrás do outro, enquanto me apercebia da fina ironia da situação — na verdade, nenhuma de nós três (já que agora eu me incluía, de alguma maneira, no grupo), tinha vinte anos —, e me vinha à cabeça quelque chose comme 
Moi non plus, je n'ai pas vingt ans, mais je ne le regrette pas.

White friday, mazé

Poko Pano, com 70 % de desconto — de € 68,00, passou para € 20,40
Se me dissessem, há uns meses, que eu compraria um biquíni em Novembro, eu responderia Ai não, que loucura, isso é porque me drÓgaram toda e me meteram num avião para o Brasil.


28/11/2015

Post em tempo surreal (chiu, que isto é a realização de outro sonho)

Cá em baixo está o tiroliroló.

Lá em cima está o tiroliroliro.



Ou: Como a vida também tem piada atrás de grades. Sobretudo, se vista de cima!

O que vês tu do teu postigo, Linda Blue? (chiu, que isto é a realização de um sonho)


Olhem, hoje vejo o meu header.


E aquele momento em que, com uma distância de 32 anos,

ouves exactamente o mesmo piropo, na rua, dito por um homem com idade semelhante, e sabe-te tão bem como da primeira vez (tanto que não a/o esqueceste)? É apenas uma frase bonita, que envolve a tua mãe numa aura santa.
Mas, tal como há trinta e dois anos — porque não mudaste nada —, não és capaz de agradecer. E limitas-te a baixar a cabeça para disfarçares o sorriso, que era tudo o que não devias esconder naquele momento.

[Alguém do Bloco? Eu explico: há piropos que sim. E sim outra vez, passados trinta e dois anos.]

27/11/2015

Mas ninguém cala este homem? # 8


Jornal Sol, 27.11.2015
Quão machista, homofóbico, racista e doente se consegue ser em apenas duas páginas?

[Agradecimentos especiais a uma menina minha, que me enviou as fotos e me inspirou o comentário.]

Estamos todos doidos

A lareira estava acesa, e a sala cheirava-nos — a mim, com certeza, mas vi-lhe nos olhos, trágicos, que também, absoluta — a Alentejo, por isso pedi para, desta vez, me deixarem arranjar-lhe as unhas ali ao lume. Que sim, mas que tinha que prometer não deixar cair bocadinhos de unha para o chão. Como se fosse possível deixar cair bocadinhos de mãe para algum lado que não seja o do coração. Mas está bem, que sim, também eu.
Na televisão, enorme e presente (omnipresente, se não fosse uma máquina), as notícias com a tomada de posse do novo Governo. Ainda estou meio atónita com a forma como a notícia foi dada por certo diário de papel, quando passa por mim a tal secretária de Estado, passo firme, alegria no rosto, bengala longa, saltos altos. Não fora ser mais gordinha, e ia jurar que já vi aqueles olhos um dia. 
Senti-me tão parva, por ver poesia em tudo o que não a tem, mas sei que não corei porque nunca coro. E mergulhei outra vez os olhos na indiferença das mãos da minha mãe.
Então apercebi-me da presença de um homem, a pôr bâton na mãe dele. Ela desacordada, parecia dormir, mas também podia já nem isso, ou simplesmente é sempre assim — cabeça para trás, boca aberta, e ele a besuntar-lhe os lábios, quase inexistentes e rugosos, com bâton. 
A mãe tem que se calar, está sempre a falar, impossível que isto fique bem.
Impossível que aquilo ficasse bem.
Agarrada às mãos quase inexistentes da minha mãe, continuei a arranjar-lhe as unhas desanimadas,  e a pensar
Estamos todos doidos.

Das minhas associações de ideias # 9

Numa FNAC, não assim tão longe de mim quanto isso

26/11/2015

Quando não nos restar mais nada

e nenhum sentido nos puder valer, os olhos não nos disserem a verdade, o toque nos soar frio e o som já não for o nosso,

Teremos, como os animaizinhos, o olfacto, o cheiro de mãe, o odor de cria, que nunca nos enganarão, que nunca nos perderão.

Prometido. Por favor.

Erro de casting

O que é que se segue? O marreco, o anão, o preto, o maricas, a zarolha (ó ié...), a joanetes, o coxo, a maneta. 


25/11/2015

Zarolha

Ainda não estou preparada.
Querem que eu tire uma fotografia, para constar da parede onde estão todos, menos eu. Mas eu tenho o meu terçolho, que me protege, e impede de ser fotografada, para já. Nunca me senti tão Dina Sfat.


Pareço a Zarolha, da Gabriela. O meu terçolho foi e veio. Tinha-lhe aplicado (um golpe baixo de) anti-inflamatório, que quase me arrancou o olho, mas que o tinha feito desaparecer (pudera). Um destes dias, o terçolho vai-se, e eu sou capaz de passar a ter dias seguidos de bad hair.
Querem que ponha um nome nos cartões que não é o meu, mas soa melhor do que o que eu uso normalmente. E eu nem percebo quando estão a falar para mim. 
Querem que eu ponha o dedo na porta, para que ela reconheça a minha impressão digital, e eu ponho um esquerdo. Explico que não sou canhota, mas dá-me mais jeito. O trinco da porta é à esquerda, o sensor está na coluna de entrada, do lado esquerdo, ponho o dedo da mão esquerda, para não ter que me torcer, passar o braço direito pelo peito, ou virar-me de costas para a porta.
Querem que eu instale mil e uma coisas abstractas e concretas no meu computador, o mesmo que não tenho, por não ser portátil. Então, querem que eu arranje um portátil. E eu ai que não, que me dou mal com os teclados, preciso de teclas a sério, preciso de martelar (e vejo bocas abertas), que me dou mal com os ratos de chapa, preciso de um rato-rato, que me dou mal com tudo e também com mais alguma coisa.
Querem que eu venda frigoríficos a esquimós. Logo eu, que nem talhadas de melancia fresca na praia sou capaz de vender, logo eu, que dou tudo — não devo ser parva, não sou perdulária, mas sou inapta para o impinjanço.
Continuo a olhar para aquilo tudo como se assistisse à minha vida numa montra, em que eu estou fora da loja.
Na rua, zarolha.
(Só ainda não me fizeram assinar nada.)

They don't want your name | Just your number

Diálogos à sombra # 13

Aparece-me de robe, logo o robe, que é aquela peça de vestuário que, por preconceito fabricado na infância, me faz imediatamente rotular, mesmo sem querer, qualquer um como doido. Os doentes da minha mãe andavam sempre de robe, e nós íamos com ela visitar os internados. Por isso, durante muito tempo (até hoje?), vejo uma pessoa de robe e penso logo que tem ar de louca. Basta que o tire, para adquirir imediatamente uma aura de equilíbrio, que pode ser tão falsa quanto aquela outra que o robe lhe dá. 
Mas não é o caso dele, que é lindo e louco de tão fresco, e é meu e fui eu que fiz.
Vem cheio de frio, mete-se dentro da minha cama, aninha-se em mim, e reza:
- Não quero ir para a escola.
Eu podia ser melhor conselheira, mais assertiva, menos solidária. Impedem-me o sono, a preguiça, a memória de ter a idade dele, o amor e mil e uma outras desculpas esfarrapadas deste género.
- Eu também não quero ir trabalhar.
- Deixas-me ficar aqui, a dormir até ao meio-dia?
- Meio-dia da madrugada? Isso é muito cedo. Não, vamos mas é ficar aqui todo o dia, a dormir, a ver televisão e a comer bolachas. 
Ficamos calados, uns segundos, a absorver o traço perfeito de um plano tão maravilhoso. Por alguma razão, ele desconfia das minhas intenções em cumpri-lo, porque repete a ladainha:
- Não quero ir para a escola.
- Nem eu — respondo-lhe, automaticamente, sonolenta, desfocada.
- Tipo que tu tens escola — e levanta-se, reequilibrado, pronto para se livrar do robe.

Quando resolves um problema e, de brinde, ganhas outro

As minhas gatas detestavam-se.
(Não, nenhuma morreu — salvo seja três vezes, minhas meninas —, simplesmente já não se detestam.)
Esperem. Não era assim que devia começar este texto.
A minha casa tem uma porta que a divide, exactamente, ao meio. E é uma porta de vidros — portanto, vê-se tudo de um lado para o outro. 
Os primeiros contactos entre as duas foram péssimos. Uma tinha dois anos e a outra cinco semanas, quando as juntámos. A mais velha agredia a mais nova — que tinha menos de um terço do tamanho dela —, a ponto de termos tido que as separar, tendo cada uma ficado em sua metade da casa. E a porta a fazer de Muro de Berlim, de Apartheid, de barreira transparente, de Cortina de Ferro. Tordesilhas. Acho que já se percebeu a ideia.
A semana passada, a maçaneta da porta partiu-se e, enquanto não foi arranjada, a porta teve mesmo que ficar aberta. As gatas, simples e naturalmente, passaram a circular pela casa toda, basicamente ignorando-se mutuamente, esquecendo a velha inimizade, (eventualmente, construção mental nossa), apesar de (ainda, talvez) não terem desenvolvido uma amizade. Estranham-se, mas não se entranham. Conhecem-se muito bem de vista, mas de mais nenhum sentido, e isso, conforme se sabe, é o equivalente a duas pessoas se poderem considerar conhecidas, mas não amigas.
A mais velha viveu, durante estes últimos anos, do lado onde está a gaiola com os passarinhos. E é inofensiva para eles, desde que, um dia, a fez tombar para o chão e apanhou um susto de tal forma, que nunca mais sequer passou perto da gaiola (e eles sobreviveram à queda). Mas a outra não. E tem rondado a gaiola, fica a mirá-la, o nariz a abrir e a fechar, as orelhas no ar, e aquela posição de salto...
Portanto, as gatas já não se vão assassinar mutuamente, já não vão arrancar os olhos uma à outra à unhada, já não vão devorar-se as jugulares alheias. Mas, agora, tenho que montar guarda à gaiola, porque Dona Mel Maria cogita que Bernardo e Bianca poderão dar uma variante, a não subestimar, à sua ração.
E eu, no meio disto tudo? Ninguém pensa em mim? Acham que é fácil governar esta nação, onde parece que ninguém se entende? O que é que faço? Promovo a amizade entre a gata e os passarinhos, derrubando a barreira que os separa, como aconteceu com o Muro?

É ou não é a existência de barreiras que fomenta os ódios?


24/11/2015

Eu fui à Porcalhota

e não me senti em casa. 
Levava um objectivo bastante concreto, que ele, sim, é que me levou lá. E então, fui.
Como sempre, estudei o mapa. E, como sempre, estudei-o tão mal, que me perdi. 
Aquilo começa por que se chama Amadora — que significa aquela que ama. Isto, numa terra que já se chamou Porcalhota. Depois, é uma cidade. E, como tal, tem placas direccionais, que explicam como chegar a Alfornelos, à Falagueira, ao Casal de São Brás e à Brandoa. Mas nunca, jamais e em tempo algum, a Lisboa. Não vá dar-se o caso de a pessoa querer voltar para trás. De a pessoa querer ir para casa. De a pessoa se sentir um peixe fora de água e querer fugir para um buraco qualquer onde haja água. Sei lá, disparates assim. 
Mas vá que fiquei a saber que a Amadora tem rotundas. E depois, elas têm saídas. E as saídas bifurcam logo que se sai por elas afora. Estão a ver, a pessoa sair de uma rotunda e ter, logo ali, a hipótese A e a hipótese B, seguidinhas, para escolher, em 4-3-2-1 segundos?
E tem uma rua, que era a que eu queria para mim, que se chama Elias Garcia, com o comprimento da avenida da Liberdade, mas em estreito. E em curvilíneo. E, em cada curva dessa grande devassa, mais uma transversal, só para baralhar mais um nico a coisa. E muitos, muitos, sentidos obrigatórios, logo seguidos de vias de sentido único, tipo impossível uma pessoa enganar-se e querer inverter a marcha.
E tem números de porta aleatórios. O 5 pode ficar ao lado do 196. Pares de um lado e ímpares do outro? Ah, isso é para esses grandes malucos dos gajos que tiveram o Marquês a traçar-lhes as avenidas. Portanto, supÔnhamos que eu queria o número 174. E que encontrei, ao fim de vários milhares de metros percorridos a penas dos cascos do meu boi, o número 170. Achais vós que foi só parquear o boi e coiso? Não. Ao lado do 170, existia um prédio em ruínas. E, mais ao lado, um terreno baldio. Depois começava outro quarteirão, no número 378. Olhem, eu gostei. Achei muito personalizado. 
Mas fartei-me e voltei, sem nunca ter avistado uma placa que dissesse, tão-só, isto: LISBOA. É que não há, já disse? Segui umas que diziam CRIL e CREL (deve haver com as outras vogais todas, mas ali eram só estas duas), e depois enfiei pela Brandoa adentro, para evitar não sei o quê, e perdi-me.
Tanto numa como noutra das duas, não pude pedir instruções aos transeuntes, porque não os havia (quer dizer, havia, mas eram poucos, e os que havia não pareciam saber onde estavam, quanto mais indicarem-me o caminho da capital do país). A sério, acho que aquelas zonas sofreram alguma desertificação. Alguém tem que ir morar para lá, sob pena de qualquer coisa. 
Entretanto, não cumpri o meu objectivo bastante concreto.
Que chatice.
Pelo menos, tirei um retrato, comprovativo da minha passagem pelo local.

Aquilo que ali está escrito é o nome de um estilo de vestir

Polvorosa

O meu vizinho de baixo é surdo e espirra muito alto — tão alto, que se ouve na minha casa e, quem sabe, no prédio todo. Julgo que uma coisa é consequência da outra. Há-de ter rebentado os dois tímpanos por conta de algum fundo alérgico, ou da mania de espirrar.
Quando eu andava no liceu, havia um edifício muito grande em construção, do outro lado da avenida. De vez em quando, eu ouvia uns estrondos, e sempre tive como certo que eram tábuas da obra, que caíam no solo, e ecoavam daquela forma. É que o barulho era igual. E, um dia, já no último ano, porque um colega de turma se riu e comentou os espirros do vigilante (na altura não havia auxiliares de educação, nem auxiliares de acção educativa — nasceram mais tarde), é que eu percebi que, afinal, as tábuas dos andaimes tinham sempre ficado nos seus lugares, o homem é que tinha um problema de excesso de decibéis. Deve estar surdo, hoje em dia.
Lembrei-me disto porque há bocado, quando fui tomar um café para acordar a alma, um homem espirrou e pôs a sala numa pequena polvorosa — e não será por acaso que a origem desta palavra é, exactamente, pólvora —, tamanho foi o estardalhaço que aplicou ao golpe espirreiro. 
E também fiquei a pensar que isto de espirrar timidamente pode provocar o rebentamento dos tímpanos. Então, ou sim, ou sopas: se, por um lado, é de bom tom reprimir o espirro, abafando o seu som e, sobretudo, evitando a propagação de perdigotos, por outro, há quem se assuste com um espirrinho educado, como me aconteceu a mim, certa vez, no metro — ia muito bem na minha vida, um senhor ia à minha frente em contemplação estática, dei um daqueles espirros plim, e o homem deu um salto na cadeira tal, que aquele coração não pode ter ficado em bom estado de conservação. 
Portanto, podemos optar por espirrar aos brados e aos ventos, ensurdecendo e alagando os outros e, a médio prazo, ensurdecendo-nos a nós próprios; ou então, fazemo-lo com parcimónia, e estoiramos os tímpanos na mesma, correndo o risco de dar cabo de algum coração mais frágil que ande ali por perto.
Santinho.

23/11/2015

Canina (eu)

Éramos as duas pequeninas, só mesmo doze meses de distância, mas ela chamava-me mana canina.


Lembrei-me disto dois dias antes de fazer anos e ela, que não mo chamava há tantos, nesse dia escreveu Olha, a canina faz anos.
Os irmãos são tão esquisitos. Têm uma linguagem só deles, parecem gémeos.
Lembrei-me da Mimi, com dois anos. De repente, deixou de ser a irmã mais nova, porque lhe apareceu uma mais pequena do que ela. As explicações O bebé é uma menina; É a mana, que é pequenina, foram transformadas em Man-mnina é pipi. Depois percebemos que Man-mnina significava, exacta e simplesmente, Maria. 
- Mimi, diz Maria.
- Man-mnina.
- Mana menina. Diz Maria
- Man-mnina.
- Então diz bolacha Maria.
- Baiacha Man-mnina.
Talvez a Maria nunca deixe de ser Man-mnina, assim como eu nunca deixei de ser mana canina — apesar de todas as separações que nos separaram: irreversíveis, irrecuperáveis, eternas. Porque eternas somos, sim — irreversível e irrecuperavelmente.

Quando a palavra formação te soa formatação

E parece-te que te estão a
orientar,
influenciar,
fazer a cabeça,
lavar o cérebro,
mudar,
sem saberes ao certo se para melhor...
E temes o dia em que estejas tão formatada, que tu própria digas
A minha formação...
e já não ouças formatação.

22/11/2015

Enquanto vocês vêem a chuva a cair lá fora,

eu cultivo-me, qual alface-alfacinha verdejante [não confundir com verde leonino].
Fui ver O Jardim Zoológico de Cristal, de Tennessee Williams. 
Teatro São Luiz, no Chiado. Desta vez, fui de metro. O estacionamento do Chiado é ridículo em todas as suas frentes: caríssimo e claustrofóbico. Para uma pessoa meter um boi do tamanho do meu num daqueles lugares, vê-se obrigada a arregaçar as mangas, abrir os vidros todos, ligar o ar condicionado no máximo à temperatura mínima, comer um bife, fazer aquecimento de bíceps, e só depois talvez o animal entre no curral que, com sorte, se encontra, vagamente a um canto, em plano inclinado, entre duas colunas, oh wait, não é um lugar, é o canto reservado à caixa de incêndio. 
Eu passo maus bocados, porque a vida vai torta, jamais se endireita, e vira-se contra mim a torto e a direito. Desde que Welly me traçou aquele plano digno dos Comandos, que nunca mais fui capaz de subir escadas sem parecer o corcunda de Notre Dame, e então descê-las, nem se fala. Cada degrau equivale a uma pancada nas coxas, o que é muito bom para quem gosta. 
Ou seja: se, à ida para lá, os quatro lances de escadas rolantes da Baixa-Chiado estavam a funcionar, o mesmo já não poderei afirmar dos quatro lances das escadas rolantes da Baixa-Chiado à vinda para cá. A cada lance rolling correspondem 3 lances de 17 stones cada um, se é que não estou em erro. Feitas as contas assim por alto (na calculadora, que eu já não dou para mais hoje), dá uns 204 degraus. São 204 pancadas num par de coxas exausto de treino militar. Ainda por cima, fui com os meus novos Cubanas*, que me fazem altíssima, omnipotente e boa senhora, mas que me dificultam exponencialmente a tarefa da descida das escadinhas de São Chiado. Mais valia ter ido baixa, pois hoje foi o dia em que percebi, finalmente, a razão de ser do nome chiado, ao dar-me ouvidos, a cada degrau descido. 
Mas pronto — vi o Teatro São Luiz, pela primeira vez nesta já minha provecta vida, embora não tenha sido o meu primeiro Tennessee (continuo sem perceber por que é que não se escreve antes Tteenneessee), uma vez que já vi Um eléctrico chamado desejo. Para completar uma lógica qualquer, ainda gostava de ver Gata em telhado de zinco quente, se não for pedir muito, miau.
O teatro é belíssimo, todo em talha dourada, embora seja preciso descer o equivalente a dois andares de um prédio para ir fazer chichi. Foram mais 60 degraus que desci, mais 60 pancadas dolorosas (devia ter levado uma fralda).
E gostei muito da peça.

* ninguém me paga para isto (mas devia).

Apesar da chuva


21/11/2015

Passaram dois anjos por mim

Dizem os brasileiros que, quando se faz um silêncio numa conversa de grupo, é sinal de que passou um anjo.
~
O primeiro, foi no momento em que ele, que sempre detestou sushi, quis provar, por amor a mim — por saber que eu gosto tanto, por ter consentido em ir a um restaurante de sushi por ser o meu dia, por querer partilhar comigo e perceber em mim o que é que tanto têm de especial aqueles rolinhos de arroz com peixe cru. Pegou nos dois pauzinhos, as vozes ecoaram que ia correr mal, afinal era a primeira vez, mas ele, mestre (Henriquinho), manuseou-os como se o tivesse feito sempre na vida, e levou um daqueles rolos à boca, certeiro. A minha voz disse, cheia daquele orgulho que me matará um dia, de tanto pecado, 
Este já nasceu ensinado.
E fiquei a ouvir a voz da enfermeira, quando mo trouxe, todo vestido de azul, cabelo preto cheio de ondas de mar, para me ensinar a alimentá-lo — e ele, de cabeça voltada na direcção do meu corpo, boca aberta no ar, só esperou que o deitassem no meu braço, para receber o alimento que eu tinha para lhe dar.
Este já nasceu ensinado
disse ela.
Fez-se ali um silêncio pequenino à mesa 
(É quando passa o anjo)
Tiveste um pensamento bom, estás a sorrir sozinha.
Ele a mastigar o sushi, com o gosto de quem gosta, irresistível passar a mão por aqueles cabelos de mar negro, e chamar outra vez, mais uma vez, para sempre,
Mamão.
~
Fui encontrá-la pequenina e inquieta, sentada numa roda de gente, alheada e minha — por isso a roubei para um canto, e desapareceu o mundo inteiro. Éramos nós, de mãos dadas como no meu primeiro dia que, afinal, foi o nosso dia um, de infinitos.
Uma mulher tinha acabado de lhe perguntar quem é que eu era, e vi-lhe os olhos em mim, responder,
Querida...
A mulher a insistir, a perguntar qual era o meu nome, e foi esse o momento em que achei que já chegava de nos fazerem doer, e fiz a mulher desaparecer, atirando-a para trás das nossas costas.
Hoje é dia 21 de Novembro, mãe.
Outra vez os olhos em mim, e um silêncio pequenino
(É quando passa o anjo)
Fez-se maior, o silêncio, quando nos envolvemos num abraço eterno — o mesmo que iniciámos  no dia do meu nascimento —, um enlaçar de braços que não mais se desfez.

Hoje é o meu dia, genitais! # 2

Ao contrário do ano passado, este ano não consegui entrar em auto-análise uma semana antes, pelo que não fiz um mega-post comemorativo, evocativo e alegórico de mim para comigo e eu. Na realidade, é quase meia-noite (vou já agendar isto, a propósito), e eu bocejo, dói-me o coiso do olho e as pernas inquietas começam a picar-me até à cabeça. Pode ser caruncho, sim. Mas tudo isso impede que daqui saia qualquer coisa decente, que não use decotes profundos nem saias curtas. 
Andei a ler a lista das coisas que ainda não fiz (as que já fiz mantém-se igualzinha, sem uma alteração que se veja), e os meus níveis de frustração ascenderam aos píncaros, uma vez que, no espaço de um ano, consigo manter inalterada a minha to do list.
Deixo os 84 sem mágoa nem rancor, consciente, porém, de que não volto a tê-los, e abraço os 94 como se houvesse amanhã. 
Tenho um dia preenchidíssimo pela frente, a começar por ronhar na cama até estar farta de lençóis quentes e cabelo emaranhado. Hoje não há cá Pilates, nem soalho pélvico para ninguém. Depois pretendo comer sushi até morrer de obesidade feliz. E vou rodear-me de pessoas queridas, também.
E, se virem um boi pequeno e velho a atravessar a A5 a velocidades desaconselháveis para as suas pobres capacidades, deixem passar, por favor — que serei eu, a voar na direcção dos braços da minha mãe.

20/11/2015

Havia um dress code, que era: TUDO AZUL


Quando é que vai ficar claro que todas — todas, sem excepção — as situações em que uma criança se encontra em pré-adopção, são resultado de abandono ou morte da família mais próxima? Não há outros motivos para que alguém — alguma pessoa —, entre em processo de adopção. O ponto de viragem, capaz de reverter uma fatalidade dessa dimensão, pode dar-se pela iniciativa de um casal, seja ele do mesmo sexo ou não. Não há alternativas. Para estas crianças, não há mais alternativas — só a via do amor, não há outra. Se não a conseguem seguir, por favor, não a impeçam. Desamparem. 


Dói-me o terçolho (a parva da nettinha chama-lhe terçol)

Sempre chamei a isto tressolho. Nunca escrevi porque nunca tive nenhum, logo, nunca tive que desabafar nenhum. Mas parece que se escreve terçol. Prefiro adaptar para terçolho. Logo eu, que tenho a p. da mania, ainda ando a aprender a falar e a escrever.
Não me sinto confortável em afirmar isto, a todo o momento: Dói-me o terçolho
Eu nunca tinha tido um terçolho, até hoje. Quer dizer, acho que começou anteontem. Doía-me o olho, à noite, e pensei que caraças, lá está o rímel (chiu) a ficar seco e andam-me a enfiar-se bocados olho adentro. Depois pensei tá bonito, olha agora o olho, já a conjecturar glaucoma, tensão ocular, rebentamento do globo (ocular, não terrestre, que esse não havia de me doer assim), mil e uma loucuras.
Afinal, acordei viva. E com um terçolho. Levantei-o da cama, arrastado por mim, e pintei-o de preto, como faço todos os dias à pálpebra onde ele se foi instalar.
Passei toda a manhã a ouvir uma dissertação de uma pessoa licenciada em Direito, que utilizou expressões como [eu anotei porque, além de ter uma memória ao nível da Dory, sou uma cabra insensível a dislexias e outros desfasamentos que tais, além do que gosto de partilhar os meus pequenos nadas]:

Otilizar — Utilizar;
Averbiar o processo — Abreviar o processo;
Dizer a ela — Dizer-lhe;
Não deixe ele — Não o deixe;
Milhor — Melhor;
Por exemplos — (oh pá...)
Sobre a ficha número — Sob a ficha número (vá que não disse númbaro);
Mas que conservadora está hoje — Mas que conversadora está hoje (e não foi para mim. Sorte de ambas).

Fiquei tão agastada que o facto de ter escrito tressolho num sms horas antes se me esvaziou de culpas.
E aumentou-me o tamanho ao bicho, naturalmente. São nervos.


Secundária de Miraflores rules!


19/11/2015

E aquele tipo

de homem — que há-de ter um correspondente feminino, mas eu não sei, nem me interessa, qual é (a dengosa?) — que chega e sente que domina, impondo uma presença que não é necessariamente agradável, tira partido de uma estatura quase gigantesca — altura exagerada, quase encurvado, cabeça-cabeçorra, mãos-manápulas, voz de trovão — excesso de simpatia intimista no primeiro contacto, "Passei aqui só para lhe dar um beijinho", beijinho mole e lento, passagem mole e lenta para a bochecha seguinte, e uma pessoa a despertar os sentidos todos, a ver se a patorra não roça a linha do soutien, o nível das costelas, ou — oh, cúmulo do suplício — a cintura, enquanto constata, mais uma vez, que este tipo de homem nem sequer — ao menos!, pelo menos!, no mínimo! — é bonito. Fora a mãe que o pôs no mundo, que lhe terá repetido ad nauseum Meu filho, tu és lindo!, que é o que qualquer mãe normal faz ao seu filho [e eu sei-o por experiência, mas o meu é lindo de morrer], mas fora isso, quem raios convenceu este tipo de homem de que são os maiores, o mundo em que circulam é uma grande coutada de fêmeas disponíveis e dispostas, e tudo o que mexe é para se comer? O espelho?
Céus, quanta dioptria.


Saudades, mas saudades a sério, eu tenho é da minha Porca

Há dias assim, como hoje, em que acordo saudosa da minha Porca e da alegria dela, que acabou por se dissociar de mim e ser ela, o meu boneco, a minha eu do gozo e da farra, que se aborrecia até à morte com os meus textos mais sérios (e bocejava, a Porca). E que, um dia, farta de seriedades e sobriedades, virou costas, a bêbeda — parece que ainda lhe estou a ver o rabo torcido — e foi-se, deixando-me Blue, blue.
Nos acordares como o de hoje, apetece-me ressuscitá-la, mandá-la vir e voltar, convidá-la a ficar, escrever a meias, a quatro mãos, a quatro patas (o que não é o mesmo que de gatas). Porque é ela quem vai ao supermercado e vê cenas. É ela a quem acontecem as sits. É ela que comete as gaffes. Ainda ontem fiz um telefonema de cerimónia, para uma pessoa da qual não me lembrava do nome (típico da Porca), mas suspeitava que era Teresa, e disse, Boa tarde, Teraaummm, como está?, e ela respondeu Joana
Ora, eu não posso continuar a misturar a minha Blue com a minha Porca, como se elas fôssemos uma e não três. 
Ando para fazer anos e não sei o que nos oferecer a vós. Talvez indigite a Porca, e ela que tome conta disto naqueles dias em que eu não esteja nada Blue, ou só nesses momentos.
Até me anda a apetecer fazer uma sondagem daquelas à Blogger, para captar opiniões, apalpar terreno, tirar a temperatura ao assunto. E depois decidirmos sozinha. Porque eu prezamos a vossa opinião. Mas, after all, o buraco é mosso. 


Lembram-se?

18/11/2015

Trago uma mão cheia de nada

Um dia que se queria diferente, diversificado, agitado, fora da caixa, longe da bolha. E volto com esta sensação de uma mão cheia de nada. As duas mãos, cheias de ar — é abri-las e encontro promessas e expectativas de sucesso, é fechá-las e dói-me o peso de tudo o que lá não consigo guardar. 
~
Hoje vi um homem adulto de olhos molhados pela morte do seu cão. 
Já tinha ouvido falar de um cão que morreu de enfarte, no momento em que reviu a dona, ao fim de um tempo que lhe foi demasiado — um coração de cão que faliu de saudades humanas.
Não me diga nada, acredita que eu chorei como uma criança?
E os olhos a encherem-se daquela água da mágoa adulta — uns olhos de homem a falirem de saudades caninas.
E eu com uma mão cheia de nada para lhe dar.
~
Faz anos um rapazinho que me caiu nas graças, eram eles duas crianças, e adormeciam de caras vermelhas e cabeças encostadas quando vinham da praia. Ela depois gostou mais de outro, passaram três ou quatro anos, mas todos os anos lhe mando beijinhos neste dia. Hoje são vinte anos, e eu tenho só isto, que é nada: uma mão cheia disso, para lhe dar.
~
Não consegui ter tempo para ir ver a minha mãe, e isso faz-me esvaziar-me inteira, como se a minha sobrevivência ainda dependesse da existência dela, como se eu não soubesse que será sempre assim. 
Faltou-me levar-lhe o nada que sempre lhe levo, as mãos muito cheias (sob a forma de chocolates pequeninos, vernizes bonitos, revistas de informação) de beijinhos e laços e dos nossos silêncios que, ao contrário dos silêncios das outras pessoas, não têm mil significados — têm só um, que é: amor.



17/11/2015

Eu fui a Chelas (e a Londres)

Depois da Buraca e do Rego, faltava-me perder-me em Chelas. 
(Vá que — que eu saiba — não é um bairro com um nome erógeno.)
Foi hoje.
Eu queria ir para outro sítio. Fui ao maps e estudei. Como sempre, estudei mal, e pode ter sido por isso que chumbei. E não, a solução para o meu caso não é o Tom-Tom, porque eu sou nervosa e hipertensa e hiperbólica. O Tom-Tom ia acabar desfeito numa valeta das estradas desta vida, após arremessamento janela fora (com sorte, de vidro aberto), mal assim ela (é uma ela, o Tom-Tom) começasse a ralhar-me porque eu não tinha saído naquela saída da rotunda que a voz me tinha imposto. 
Também tenho problemas com rotundas, desde que, uma vez sem exemplo, fiz exame de condução, o examinador me mandou sair na segunda saída de uma rotunda que era logo ali de quem saía do Centro de Exames, e eu saí na primeira, pelo que fui dar à Bobadela, local que jamais voltei a frequentar, depois de ter chumbado rotundamente — lá está — por causa daquela rotunda e de outros arredondamentos e redundâncias que fiz com o automóvel naquele dia. 
Não atingi o meu destino por um triz, o que quer que isso seja, mas, em compensação, e orientada pelas indicações de um senhor agente da autoridade, que andava ali a ver passar as máquinas de uma obra, atingi Chelas por trás. Foi quase uma cobardia.
Eram cerca das 10 horas, quando vi Chelas, e foi-se-me o preconceito: aquilo parece Londres. 
E em quê, bela e gira Linda?, perguntam vocês em uníssono. 
Olhem, em tudo.
Tem smog. E tem tanto smog como Londres, muito em particular Londres de Dickens, Londres de Ripper, assim uma coisa muito vitoriana, muito misteriosa, sinistra mas sensual. 
Quanto ao resto, pareceu-me igual. Mas o smog era tanto e tão denso que não deu para confirmar muito bem.
Eu posso ter feito uma grande descoberta, em termos turísticos, hoje.


À procura de um lugar

Nós, aqui, funcionamos com o salário mínimo nacional,
disse-me ela assim para mim. E eu lembro-me de ter puxado a argola do lenço que levava ao pescoço, tigresse de manchas azuis, porque aquilo me começou a asfixiar de horror. Tinha acabado de me dizer que
O horário é das 10 às 20,
e eu já parva,
Mas isso são dez horas por dia, mesmo com pausa de almoço...
Meia-hora, disse ela, à laia de correcção. E disse também,
Trabalhamos dois sábados por mês. E há as comissões.
As comissões são 30 % sobre valores irrisórios, se eu ou outra vítima vendermos 30 merdas por mês. Mas há a esperança de passar para o patamar dos 45 %, se vender 60 dessas merdas.
Foi por isso que comecei a agoniar e tive que alargar o laço (ou era um nó?) do lenço.

Quando andas a bater pernas nas recrutas é que te apercebes de como a vida é dura e também a razão pela qual as mulheres não usam salto alto.
Há anúncios que pedem boa aparência, mas não são para atendimento ao público nem para apoio a eventos, nem para nada nem coisa nenhuma que exija que não tenhamos aspecto de sem-abrigo. Outro dia vi um, para um escritório em Odivelas, que pedia boa aparência. Pedirem boa aparência para um escritório em Odivelas é mais esquisito do que pedirem boa aparência para uma oficina de bate-chapas na Lapa. Serve para quê? Também me pergunto (ultimamente, passo os dias a fazer-me autênticos questionários) qual será a acepção de boa aparência num escritório em Odivelas. Legging de blusa curta (transparente e com soutien push up cor-de-hard-core) e sapatos salto quinze, compensados? Unhas de gel, azuis escuras com o brilhante espetado, cabelo amarelo de raízes pintadas de preto e brincos bling-bling? Eu não tenho nada contra Odivelas, ainda menos contra escritórios, meníssimo ainda contra escritórios em Odivelas. Mas há coisas que me despertam a cabra e ela tauteia, berrando, As meninas de Odivelas, e adoro ouvi-la na parte do trilili. Parece a Djali.


Hoje preenchi uma ficha de inscrição onde me perguntavam quase tudo menos busto-cintura-ancas (o que foi pena), cor dos olhos e altura. De resto, até se estou deprimida me perguntaram. Será que existe alguma alma que põe a cruz no sim? As hipóteses de resposta eram sim, não e por vezes. O questionário também perguntava se sofro de obesidade. Apeteceu-me escolher por vezes, e acrescentar especialmente depois de almoço. E confessar que gostava mesmo era de trabalhar em Odivelas.

No final das contas mal feitas, precisei de fazer drenagem das pernas, que já não me tinha nelas, mas isso fica num quarto andar sem elevador e cansei-me na casa de partida. Os sapatos já me vinham a morder os calcanhares, pareciam aqueles cãezinhos que parecem a pilhas, Pinscher, e que ladram em falsete constante, em contrabaixo, em contramão, e contra tudo. Depois do nó dos enforcados que trazia ao pescoço, pareceu-me o Pinscher uma espécie de cilício. Cá de baixo, os quatro andares pareciam-me as escadinhas de Santo Amaro, ou de Santo Estêvão, ou de outro santinho qualquer, e eu já estava devassa e possessa demais para entrar em peregrinação, pelo que me descalcei no rés-do-chão e as subi descalça. Cheguei lá de collants sujos nos pés, e de alma espremida desde os pés, mas de pé.
Disse
Por favor, deite-me as mãos e massaje-me,
e deitei-me na marquesa — morta.

Amanhã há mais. Scarlett é que a sabia toda.


16/11/2015

Diálogos à sombra # 12

Quando nos reproduzimos, esquecemo-nos de que estamos, precisamente, a produzir-nos de novo. 
Ela e eu na loja da Disney. 
Entramos num transe comum. Eu peço-lhe:
- Ai, mulher, tu tira-me deste inferno.
- Porquê? — Ela tem uns olhos tão bonitos. São enormes, escuros de ébano, guardam o mundo, e aquele é um mundo tão bom, tão cheio, tão dela e, mesmo assim, tão meu.
- Porque eu quero levar tudo!

Já vimos a loja toda, de fio a pavio, já mexemos nos bonecos todos, eu já tentei arranjar a desculpa de que vou comprar uma prenda para uma menina que faz quinze anos e ela já me demoveu — Aqui não há nada de nada que uma rapariga de quinze anos goste — e vamos a sair. Eu digo-lhe:
- Ainda bem que já não sou uma criança.
- Porquê? 
- Porque queria levar tudo!

E giro-giro era que o meu cérebro não fosse sistematicamente inquinado por uma maldita jukebox pimbo-mental, que me põe a cantar, sem pré-aviso, Mister gay, já não sou uma criança...

Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 35

Até recebo mails. Com as promoções e as loucuras deles.
E depois fico a pensar: Está preparado para a Promoçãozão do Continente?
Ora, espera, o aumentativo ão não é masculino? É. 
Promoção não é um substantivo feminino? É.
O que é que têm contra o ona?

Aha, mas, desta vez, antes de picar no publicar, e depois ter aqui anti-nazi-grammar-nazis de serviço, fui-me informar. Parece que o "problema" já é antigo. E diz a Ciber que sim, que pode ser, porque, aparentemente, assim como não há aumentativo para a palavra promoção, serve um qualquer, e pode ser -ão.

Pois, eu acho que não. Mesmo foneticamente, ão-ão, é tão onomatopeico que baralha. Se é para ficar no ouvido, fica. Mas porque se estranha, e não se entranha. 

Promoçãozona

Não percebo o problema. 

Está preparado para a Promoçãozona do Continente?

Então não soa muito melhor?



Démarches

Saio do elevador em direcção ao parque de estacionamento e, no chão, vejo um porta-moedas. Preto, mole, pequeno, sinto-o cheio de moedas. Apanho-o,  parece que me queima as mãos — o normal seria abri-lo e verificar se, pelo menos, não teria uma indicação quanto ao dono. Levo-o ao balcão de informações, com a intenção de deixar o meu contacto. Pouso-o, e, já com testemunhas, abro-o, finalmente, e verifico que só tem dentro, só em moedas, só 13 euros. Explico onde o perdi, digo que venho para deixar o meu contacto, e é quando começo a sentir-me desonesta, porque não tenciono deixar o porta-moedas e a funcionária do balcão não está de acordo com a minha ideia. Diz que faz o registo da entrada do porta-moedas e que, se a pessoa aparecer, faz a entrega. Eu digo que não, que deixo o meu número de telemóvel, e que, se o dono aparecer, me liga a mim, e entrego-lho eu. Ela olha-me de lado e pergunta, "A senhora é que vai ficar com o porta-moedas?", e eu respondo que sim, uma vez que fui eu que o encontrei. Ela insiste que, assim, se a pessoa aparecer, não vai encontrar o porta-moedas, e eu teimo na minha, que sim, que basta ligar-me. E pergunto: "Então, e se não aparecer?", mas ela não me sabe responder a esta grande charada. 
Então, sugere que eu vá à esquadra da polícia deixá-lo, e eu ai que não, já que o encontrei no estacionamento do edifício em cujo balcão de perdidos e achados ela trabalha. Ela espeta as sobrancelhas no ar, a rasar perigosamente a raiz do cabelo, saca de um bloquinho de apontamentos que tem a chancela de um produto de limpeza (uma oferta, portanto), e pede-me o nome e o contacto. Debito, e rodo os calcanhares, mas ela ainda quer saber: "Mas não deixa aqui o porta-moedas?" — que não, pela enésima vez, que quem o encontrou fui eu, e é de mim que o dono vai recebê-lo. — E o resto da lógica não lhe explico, mas, se ele nunca aparecer, o raio da porcaria das moedas pertencem-me. 
Já percebi que ela conseguiu fazer o raciocínio contrário, que é o da possibilidade — mais que plausível — de o dono nunca aparecer, e o porta-moedas ficar no balcão. 
E afasto-me, desejando que a pessoa apareça, ou que os 13 euros não lhe façam diferença, sentindo-me julgada e condenada pelo sobrolho da mulher, cara de culpada, andar de desonesta.

15/11/2015

A pequenez

Estamos sempre , de alguma maneira. Ou porque estivemos com o bilhete comprado e perdemos aquele avião que caiu. Ou porque estivemos em Nova Iorque até à véspera do dia 11. Ou porque até pensámos em estar no outro 11, em Espanha. E até admira que não tenhamos estado em Londres, quando andamos de metro todos os dias. Ou porque estávamos na praia, quando o tsunami começou a rugir, mas fomos fumar um cigarro ao resort, e, por isso, a onda nunca nos apanhou. 
Agora é o quê? Não temos portugueses suficientes entre mortos e feridos, temos que protagonizar de alguma maneira. Foi uma barriga portuguesa que gerou um monstro. Somos grandes. 
O terrorista "luso" nasceu no dia 21 de Novembro.
Eu também. De alguma maneira, muito retorcida, também estive . É a Teoria dos Seis Graus de Separação em pleno.
Devo sentir-me grande?


Eu sou aquela pessoa que nunca, em circunstância alguma, deves levar ao supermercado # 34


Vejo vacas mascaradas de Pai Natal.
Vá, é exagero. Era só uma.

(A mesma de outro dia. Mu.)

Well, Well, Well...

Escrevo-vos ainda a quente.
Well, o treinador, andava mesmo a pedi-las. Não se conformava, desde aquela vez em que fui à Bunda dele, e de não ter lá voltado. Não sei se imbuído de algum espírito de vingança, tinha-me posto à tabela — e só não literalmente porque não é treinador de basquete: eu precisava, na perspectiva dele, de um treino personalizado. Ou seja, dado por ele. Vi-o anteontem na sala, a dar treino a outra. Passei por ele, armei-me em boa, pisquei-lhe o olho e disse "Havemos de combinar um treino juntos". Ele, porque — e repito — vive disso e não pelos meus belos olhos, marcou-mo logo para hoje. 
(Eu sabia que ia sofrer, mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.)
De manhã, vesti-me de Catwoman, mas arrependi-me logo, como a santa dos cabelos compridos. Vá que não chorei. As roupas eram excessivamente reveladoras, e uma mulher sabe que esse tipo de roupa tanto lhe dá para o bem como para o mal. Mudei para qualquer coisa de mais largo — um top de alças largas — e aqui vai disto, recto ao PT. 
Cheguei e ele não estava na sala, pelo que pedi que o chamassem pelo altifalante, depois de ter fanfarronado "Hah, deve ter perdido a coragem".
(Quem perdeu a coragem fui eu, para além de muitas outras coisas — a vergonha, a dignidade e todas as forças anímicas, até às do pestanejar. Juro que, neste momento, nem para um eyelash power decente estou capaz.)
Começou por me fazer uma avaliação de massa gorda (valham-me os santinhos) e um questionário sobre hábitos alimentares. Existe muito pouco a alterar nesse campo, porque faço poucas asneiras à mesa, embora diga algumas. E como muita relva todos os dias (o CR é um menino, ao pé de mim). Well perguntou-me, então, qual é o meu objectivo, e, nesse momento, comecei a declamar:
- Eu, como todas as pessoas, travo uma luta inglória, da qual vou sair vencida, contra o tempo. O que eu quero mesmo é não engordar e não envelhecer. E, se tiver que acontecer, que seja só uma delas: gorda e jovem ou magra e velha. 
(Foi bonito. Nos olhos dele vi passar uma luz que confirmava qualquer coisa.)
A primeira tortura a que me sujeitou foi a remada. Aquilo correu bem, mas estoirou-me. Acho que udi as forças todas no primeiro round. Como ia descansada, muscularmente falando, entrei a matar e saí de lá morta. Mas não quis dar parte de fraca, o que foi muito mal pensado (mais valia ter-me logo deitado no chão, a chorar e a espernear, e não me teria sujeitado àquele achincalho), e permiti que ele abusasse da sorte e de mim: ele foi TRX (don't ask, google it), ele foram lunges, ele foram tríceps, ele foram flexões, aquilo foi a tareia da minha vida, essa mesma que os meus pais nunca me deram. Não há dúvidas que é inútil fugirmos ao nosso destino, e eu hoje percebi na carne a verdadeira acepção da diferenciada expressão arraial de porrada
Neste momento, posso afirmar que Well me amputou as coxas, ou, pelo menos, lhes pegou fogo, tendo em conta que não as sinto. Só sei que as tenho se olhar para o sítio onde é suposto estarem colocadas, pelo que acredito que vou passar um belo domingo de paz, ora incapaz de me sentar na sanita para um vulgaríssimo e curial chichi, ora incapaz de me levantar dela. O que a experiência me diz é que as coxas são imprescindíveis para sentar e levantar, não sei lá como é que é com as outras pessoas. E eu ainda não aprendi a fazer chichi de pé. 
Percebo agora por que é que os homens fazem aqueles treinos de pernas, não se importando se, a seguir, passam o dia todo em pé.
Muito mais haveria a dizer sobre este assunto, mas noto que os braços também foram violentados, por isso vou acabar este texto sem nenhuma conclusão decente, antes que me caiam em cima do teclado e aconteça aqui uma desgraça, literLMENNNNNTTEE-d- rnew -lhrgbe


14/11/2015

rage

Há três semanas, mal contadas, porque podem ser dezoito anos, que tenho a trabalhar para mim uma pessoa que se encontra amuada. Entra de má vontade, suspira ou murmura num jacto monossilábico qualquer coisa que se assemelhe a um bom dia, Bom dia!, uma pedrada, que, traduzida, equivale a mau dia, estou contrariada, não quero estar aqui, ninguém me pergunta o que é que eu tenho, cambada de insensíveis, a vida é uma merda, olhem para mim.
E eu não olho. A autocomiseração, ainda para mais se vier revestida de agressividade e show off, cria-me uma repelência que opera em mim o efeito contrário. Ando a tentar poder com os males dos outros, ciente de que ninguém pode com os meus. Preciso de me proteger, a qualquer custo, de quem me sugue energias das quais necessito para atender ao essencial. Isso não me isola, antes me obriga a uma triagem do que verdadeiramente importa.
Esta pessoa assistiu à primeira infância de duas crianças e ao nascimento de outras duas. Jamais lhes fez uma festa ou sequer lhes ofereceu uma intenção dela, pelos anos, ou pelo Natal. E recebeu sempre. Ela e os filhos.
Esta pessoa tem uma filha, exactamente da mesma idade de uma dessas crianças. Agora que são mulheres, emergiram todas as distâncias que as separam desde sempre, não só pela (inegável) questão financeira, que é também cultural e educacional, ou seja, tudo aquilo de quem ninguém — eu incluída — tem culpa.
~
O que me aterroriza não é a raiva ruidosa, o protesto verbalizado, a revolta pelas palavras, mesmo que apenas escritas.
A verdadeira ameaça está na raiva surda, no fel, no ódio alimentado e regado, silencioso e tenebroso, corrosivo, irracional — porque sem razão nem motivo, mas com motivação —, o mesmo que, um dia, acorda, gigante, indomável e implacável. 

~


13/11/2015

Despedidas

Nasci num dia horrível, porque chovia desalmadamente e era um dia cinzento e frio. Não é que me lembre, nem ninguém algum dia me contou, ou sequer tenho essa informação via net (que também não procurei, às tantas até um site com essa inutilidade existe), mas é o que eu acho que aconteceu, já que, cada vez que faço anos, está mau tempo. A minha mãe sempre me disse que foi um dia muito atribulado, que teve que correr para o hospital — mas também acho que não literalmente, embora fosse bastante perto —, senão eu nascia no corredor. E que a minha irmã, com um ano de idade, chamava por ela, enquanto eu, enfim, também. Disse-me ainda que estava muito feliz, e que havia um sol radioso, e um dia esplêndido — e só faltava haver música no ar, isto acrescento eu. Mas nunca me confessou que o dia estava mesmo feio, e sim que me vestiu de azul porque achava que ia ter um rapaz, e deve ter sido por isso que eu fiquei com esta mania. 
Não é agradável ter nascido uma semana depois do Verão de São Martinho. Pergunto-me o que é que lá fiquei a fazer mais aquela semana, logo eu, que gosto tanto de calor. Hoje dediquei uma boa meia-hora a trocar os vestidos de Verão pelos de Inverno, e eram trinta e um contra dezoito. É claro que metade de uns e de outros nunca uso — por estarem velhos, por me ficarem mal, por estar farta deles, por não saber ainda hoje o que é que me passou pela cabeça quando os comprei —, e, da outra metade, alguns uso uma vez por estação. Andava há semanas para tomar esta coragem, atravessei algum nevoeiro, nuvens, ventos, chuvas e tempestades, passei este veranico com os olhos postos no céu, engolindo bolhas de oxigénio que me dêem baterias para a hibernação, mas hoje, finalmente, despedi-me do Verão. 
Falta uma semana para, enfim, começar o Inverno. E venham mais primaveras, que eu estou pronta.

Apesar de ser sexta, 13

Agarro em todas as balas de alegria e com elas me alvejo, até se me acabarem as munições.



12/11/2015

Na minha família, atravessa-se o rio depois de se morrer

Nascem todos no Alentejo e vêm morrer a Lisboa, porque aqui passaram a morar, ou porque assim lhes calhou nos meandros dos hospitais. Depois voltam, muito deitados, atravessando o rio pela última vez, na direcção de além Tejo.
São muitos, são imensos, são enormes, também em quantidade. Por isso, de vez em quando, ultimamente vezes a mais, atravessamos o rio juntos e voltamos mais sós, os que cá ficam — em Lisboa, e na vida. Andamos para perder o parentesco uns dos outros, não porque nos tenhamos esquecido, mas por termos a árvore genealógica mais peculiar e ramificada do pomar. Dei comigo a dizer a uma das minhas tias o que só talvez ela e eu consigamos entender — Tia, a tia é minha prima direita, pois se o seu pai era irmão da minha mãe... — e é isto que nos fica, todos entrelaçados no tronco esquisito que o meu avô e os meus tios mais velhos plantaram, por terem procriado raízes ao mesmo tempo. 
Hoje, quando atravessei o rio por mais uma vez, que sei não ser a última, lembrei-me da minha Titi — que foi minha mãe, tão mãe quanto a minha mãe —, e de como estava um dia assim, radioso e azul, quando ela fez a travessia, apesar de Janeiro. E veio-me à lembrança uma esperança, que é a de, pesem embora os dias azuis que banham a ponte azul, nunca chegar a minha vez de atravessar o rio tão deitada. Eu quero ficar aqui. E, se tiver mesmo que o atravessar, que seja porque os meus olhos se fecharam além Tejo, e eu estarei, enfim, em fim, a voltar para casa. Num dia assim, azul.

Apercebo-me da existência de um padrão...

Só soube hoje. Por isso, para mim, a notícia está actualíssima: o Vaticano fez um calendário com os padres mais bonitos (desconheço o termo de comparação achado e quais os critérios adoptados para a selecção, mas deve ser aquela cena da beleza consensual, ou com-sensual, que a pessoa não sabe). Já foi em 2012, mas o que é que isso interessa? Os rapazes não hão-de ter amadurecido assim tanto em três anos. E devem continuar a vestir as saias lá em casa. 


São giros, chiu. Eu gosto mais dos mais despenteados, mas isso sou eu, que também tenho uma alergia ao pente. Portanto, Setembro e Dezembro. O de Junho é giro, mas lembra-me demasiado o actor Robert Sean Leonard (parece que não, mas eu sou um poço de cultura, oh captain, my captain, oh House, my Doc.)

Isto lembrou-me aqueles malucos de Setúbal, que, mudando o que há a mudar, são pessoas do mesmo género. De resto, ambos os calendários têm a intenção benemérita de heteroajuda, ou muito me engano. Tipo aquilo dos escuteiros e dos escoteiros (que eu nunca sei a quais é que estou a comprar o calendário).


Estava, plácida e muito santa, nestes pensamentos, observando o calendário dos padres, lembrando-me do dos bombeiros, quando disse assim para com o meu fecho éclair: 
Hummm, vejo ali um padrão...
Fiz uma pausa, não cofiei o meu bigode porque não o encontrei, não fumei um pensativo cigarro porque já deixei há muitos anos (de pensar também), não ajeitei o monóculo porque um é pouco, e, retomando a minha própria linha de pensamento, discorri:
... e nenhum bombeirão...


11/11/2015

Os anos não passam

Está tão velho, o homem da loja de electrodomésticos. E a loja dele. E o bairro inteiro, com eles.
Aquilo era uma lojeca, quando eu vim para aqui morar, daquelas que vendem material eléctrico e algumas máquinas. O dono dentro da loja, a empregada de balcão a varrer a entrada, os dois rapazes do serviço externo a alternar entradas com saídas, pois era para essas que existiam. Ficava numa zona muito movimentada de comércio local, e era por isso, e não só por isso, que eu ia a pé, a empurrar um carrinho de bebé. Anos disto. Décadas.
O homem já me viu mais magra, já me viu mais gorda de tão grávida, já me viu mais nova, já me viu mais feliz, já me viu mais cansada. Eu só o vi menos velho. O cabelo e o bigode que, tão meticulosamente, há vinte anos pintava de preto, exibem, agora, cerca de cinquenta por cento de fios brancos. Os olhos, que antes pareciam dois alvos pretos, e começavam quase todas as frases por uma amiga minha, estão agora toldados com pequenas sombras amarelas, e fala-me de lâmpadas LED e assuntos que só ele entende, e eu já não acompanho. 
Coitado, está tão velho. 
(Eu estou na mesma.)
É capaz de já não se lembrar de mim de cabelo liso e lábios muito vermelhos, a querer ser uma mamã bonita e arranjada, com terror ao desmazelo. E de mim a entrar-lhe na loja com o cano do aspirador entupido por um par de collants e não ter uma explicação convincente para aquilo. E depois com a 1-2-3 com o motor partido, por ter tentado triturar chouriço para meter no caldo verde da bebé. Ou de o ter chamado por engripamento da máquina da roupa, quando tentei lavar um colchão de berço. 
Era tão nova. Era tão cansada. 
A loja mudou-se para a outra ponta do bairro, para um local onde só passam carros. Tem os mesmos ferros de engomar avariados, espalhados pelos cantos, as mesmas televisões que alguém um dia deixou para arranjar e já não voltou para ver o resultado. Uma delas, panorâmica, dá as notícias e toma conta do ar. Pouso a mala no balcão, afinal sou uma residente da área, quase da casa, temos à-vontade. Espreito lá para dentro e apercebo-me que não levei a lâmpada fundida que me serve para amostra da que pretendo levar. Ele ri-se, quando percebe o meu lapso e quando, sem uma palavra, saio da loja e volto ao carro para ir buscar a amostra. 
Não mudei nada.
Ele vai buscar uma caixa cheia de pó e tira de lá uma lâmpada parecida com a que lhe mostro para amostra. Corre gavetinhas de plástico, onde guarda vários fios, que liga à ficha, para verificar se a lâmpada está boa
A loja cheira a pó e ele tem cabelos e pêlos brancos no bigode.
Depois vem acompanhar-me à porta, a falar sobre instalações eléctricas. 
Está mesmo velho, coitado. 
Eu não mudei nada.

À procura de trabalho # 2 | Actualizado

Pergunto-me se alguns dos RH deste país, que tanto se divertem a topar com erros e disparates nos CV que analisam, sequer completaram o primeiro ciclo.



E depois, eu tenho leitoras [nunca pensei escrever esta frase, socorro, mamã!] lindas e atentas, que me incrementam os posts com pérolas assim: