04/04/2015

Hoje eu parecia tu

Fui a Santarém e vi uma estátua. Tinha quatro figuras humanas, mas eram todas partes da mesma. Havia uma figura feminina, de mamas redondas, e uma menina, quase adolescente, a aconchegar-se a elas, como se fosse ser amamentada. Fiquei ali parada, porque aquela mãe e aquela filha me diziam coisas familiares, que é o mesmo que dizer coisas bonitas. Depois, havia outra figura, masculina, paralisada, hirta, queda e muda, enfim, quieta - as outras três não estavam quietas, embora fossem estátuas, e também não estavam caladas -, que tinha uma bolsa à frente da anca, não percebi o que era, mas também não estava em maré de piadas fáceis. Eu, às vezes, pareço mesmo uma senhorinha crescida. E havia mais uma outra figura, também masculina, de espada na mão, acabada de chegar da guerra, derrotada pelo momento, esmagada pelo desgosto.
Frei Luís de Sousa. Dizia a legenda, mas não era preciso. A cena-clímax da peça: o regresso do marido, a constatação de que ninguém o reconhece, nem a própria mulher, já casada com outro, e de filha no regaço.
Quem és tu?
Ninguém.
Pus-me a relatar isto tudo, num entusiasmo que só vejo no meu reflexo, quando te me vejo, e me contas as tuas coisas, e me deixas entrar nesse jardim onde só vai quem tu quiseres, me levas pela mão e me mostras o que há do lado de lá, onde tudo é luz, e há uma cor, em tons que inventaste tu, como o tom absurdo e o tom escandaloso, e onde as palavras têm vários significados, mas tu todos entendes, e tudo é incomensuravelmente mais bonito. 
Estava acompanhada por mais seis pessoas.
Não, minto. Estava completamente sozinha.
Ninguém ouviu a minha explicação, nem a tua, quando me contas as tuas coisas e me deixas entrar nesse jardim onde só vai quem tu quiseres.
Fiquei sozinha, a pregar no deserto.
Há desertos mesmo dolorosos. 

Quem és tu?
Ninguém.

Foto daqui.
Não tirei nenhuma.

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